15 de março de 2011

Os abutres

Luís Farinha

Será a avidez desmedida, a má formação moral, a propensão criminosa ou o conjunto destes três pressupostos que explicam o desvario que nas últimas décadas fez aumentar até ao paroxismo os crimes de colarinho branco? Sejam estas ou outras as razões do desatino, parece chegada a altura de a Justiça mostrar que não é uma estrutura amorfa na sociedade portuguesa.

“Acho que o Governo não quer penalizar – pelo menos pela proposta que apresentou – não quer, efectivamente, penalizar a corrupção e os crimes económicos ou financeiros”. São palavras de Carlos Anjos, presidente da Associação Sindical dos Funcionários de Investigação Criminal, ao microfone da RTP. Tendo em conta a posição de Carlos Anjos e a responsabilidade que dela emana não se pode pretender que esta declaração seja feita de ânimo leve. Assim sendo, é de concluir que a mesma se presta a profunda reflexão. Mais ainda quando é corroborada por outras figuras ligadas à administração da Justiça, como António Martins, presidente da Associação Sindical de Juízes Portugueses (ASJP): Todas as pessoas, incluindo as que “estão dentro do sistema judicial” constatam que “os grandes casos de corrupção não chegam efectivamente a julgamento”. (à Agência Lusa em 28 de Julho de 2008).
É um cenário assustador? Claro que sim.

Mesmo tendo em conta a dificuldade em provar a sua prática, nota-se que há uma certa postura de “branqueamento”, por parte do sistema, relativamente às falcatruas económicas levadas a cabo por pessoas com elevado status social. Apetece colocar uma questão; se fosse mensurável, quem é mais criminoso: o indivíduo que furta um automóvel, o que assalta uma casa ou o sujeito que “desvia” uns milhões valendo-se do seu alto estatuto social, profissional ou do cargo público que exerce?

Assim, por que será que “o sistema” é lesto na penalização do primeiro, enquanto parece emperrado em relação ao segundo? Queiram ou não, no caso português têm sido os media a assumir e a cumprir a tarefa de chamar a atenção dos cidadãos para os escândalos resultantes dos crimes de “colarinho branco” ocorridos nos últimos tempos, a despeito do notório agastamento que tal prática desencadeia. É verdade que estes crimes já se registavam no tempo do Estado Novo, crimes calados à força para que não fosse posta em causa a dignidade das figuras e figurões que se acolhiam ao abrigo proteccionista do regime então vigente. Posta a questão desta maneira, parece oportuno lembrar que, entretanto, aconteceu o 25 de Abril para acabar com a bandalhice da ditadura.

Podem acusar-me de ler demasiados relatos sobre as práticas criminais da “Máfia”, “Camorra”, “Cosa Nostra”, “Ndangheta”, “Sacra Corona Unitá”. Acredito, porém, que talvez seria excessiva a presunção de que em Portugal os crimes económicos registados até hoje possam ter sido concebidos por qualquer organização de cariz mafioso. Na textura política decorrente da revolução dos cravos, tal cenário não colhe. Seria de uma enormidade absurda. Contudo, parecem dignas de crédito as notícias de grandes golpes de natureza económica que os media têm veiculado, pese embora o facto de estes crimes serem de difícil percepção pois são preparados por indivíduos com fácil acesso aos canais permeáveis à sua prática, gente que deita mão de todos os mecanismos e artifícios capazes de esconder as suas sombrias actividades através de manobras complexas.

Prova de que a sociedade lusa acomoda nas suas entranhas figuras capazes de crimes de “colarinho branco”, é a preocupação já manifestada por vários magistrados, dos quais merece destaque, pela sua frontalidade e ânsia de ver dignificada a justiça portuguesa, Maria José Morgado, directora da Procuradoria-geral Distrital de Lisboa, para quem a escalada deste género de crime é um facto irrefutável que tem de encontrar resposta adequada no âmbito de tribunais inflexíveis.

Tem sido um forrobodó nos últimos anos e isso é indesmentível.

Os casos são mais que muitos e todos eles levam à mesma lastimável conclusão: Portugal está a saque num cenário estranhamente parecido com o dos “abutres” que descem ao terreno afim de saciarem a sua voracidade no que resta das ruínas causadas pela calamidade que tudo destruiu.

Portugal atravessa um dos períodos mais difíceis das últimas décadas. A montante, a situação não oferece sinais que façam acreditar numa reviravolta económica que possa servir de esperança a este nosso maltratado País. Daí a acção duns quantos que, por excesso de cupidez, decidem guardar para si as migalhas que ainda restam, certos da impunidade que lhes confere o seu elevado estatuto ou a complacência dum sistema criado à sua medida.

É o “salve-se quem puder”.

Entidades bancárias, autarcas e gestores de empresas têm visto os seus nomes inscritos em processos que nunca mais acabam. Uns fogem, outros são detidos e outros ainda vão passeando lá por fora a sua pouca-vergonha. No fim de contas nada os distingue dos autores de crimes comuns, a não ser a enormidade dos delitos que cometem, esses sim, bem mais sórdidos, na medida em que traem a confiança de gente de boa fé.

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