31 de outubro de 2011

Enquanto isso...

Luís Farinha


Sei que um dia me vão dar razão... Quando; depois de quê, só o futuro dirá! Para já, apenas me limito a ir despertando a atenção das pessoas mais responsáveis, para o que se está a passar em termos de violência na sociedade portuguesa.

Recordo ainda o tempo em que nas grandes cidades, como Lisboa e Porto, se saía à noite, depois do jantar, para ir à "baixa" ver as montras, para passear na Avenida da Liberdade, para subir ao Monsanto e, lá do alto, ver a cidade iluminada, ou para ir até à Torre de Belém, apanhar um pouco da frescura do Tejo.

E hoje?

À "baixa" já não vale a pena ir porque as montras, além de terem optado pelas luzes apagadas, estão fortemente entaipadas por grades e portas de ferro. Um passeio à "Avenida" está fora de questão para quem se esquiva às eventuais cenas canalhas em que a noite se tornou fértil. Ao Parque Eduardo VII, antes, um lugar de usufruto das famílias lisboetas, já nem é bom falar. E quem se atreve a subir ao Monsanto (até de dia...) para usufruir de um pouco de ar não poluído, ou à Torre de Belém?

Realmente, as coisas mudaram muito desde há uns anos atrás.

E como sou dos que acreditam que nada acontece por acaso, quedo-me a pensar o que terá feito mudar o dia-a-dia dos portugueses…

Antigamente, as acusações ao regime de ditadura que então se vivia eram mais que muitas e, francamente, não era caso para menos. Não havia liberdade de cidadania, as polícias actuavam arbitrariamente, a censura quartava a criatividade dos intelectuais. Era um regime totalitário, com tudo o que de mau o poder absoluto sanciona. Curiosamente, porém, podíamos sair à rua, de dia ou de noite, sem receio que alguma coisa de grave nos acontecesse. Reportando-nos aos idos de 50 ou 60, que diferença fazia descer ao Casal Ventoso, percorrer as ruas de Alfama, subir ao Bairro Alto?

E hoje?

Hoje há liberdade, a polícia é publicamente criticada, a censura foi extinta. A tal ponto que é já possível organizar noites da má língua*, enquanto se tornou corrente a manipulação obscena da opinião pública nos meios de comunicação. A liberdade é tanta que, quando os jornais se excedem, os ofendidos desafrontam-se à bofetada em vez de recorrerem aos tribunais, como é de uso nos países tidos como civilizados.

Por falar nos meios de comunicação... quando se procura encontrar a alavanca que virou a sociedade portuguesa, há quem se detenha a pensar que à televisão cabe uma grossa fatia de responsabilidade no clima de violência em que hoje se vive neste jardim que antes era conhecido pela brandura dos seus costumes e do seu povo. Na verdade, talvez por simples coincidência, a mudança verificou-se exactamente a partir do advento das televisões privadas. Daí a interrogação muitas vezes feita se a luta pela conquista dos favores da audiência não redundou num crescendo de cenas de violência, de sexo mais ou menos explícito, da consagração dos valores da corrupção, tornando heróis os que se conseguem elevar aos lugares cimeiros sem olhar aos meios utilizados, num vale-tudo que deixa estarrecidos os mais temeratos.

As famigeradas telenovelas, adiantam muitos, funcionam como o principal elemento instigador da depravação dos costumes e da desagregação familiar. Assegura, quem assim pensa, que o apelo aos instintos primários dos cidadãos, evidente nessas cruas cenas de libertinagem moral, à força de ser repetido acaba forçosamente por criar raízes. Realmente, como será formado o carácter das crianças a quem é mostrado repetidamente que as divergências entre adultos são resolvidas não pelo diálogo mas a tiros de pistola ou com socos no nariz? O que se espera do comportamento futuro dos adolescentes ao mostrar-se que a celebração do casamento passou a incluir a data previsível da inevitável futura separação, e que as desavenças dos casais são dirimidas, "muito naturalmente", com o adultério? O que se espera que a sociedade responda quando as telenovelas exaltam reiteradamente as vantagens da pulhice, da deslealdade, da velhacaria?

É preciso ser de ferro para resistir a estes apelos, e o ser humano é feito de carne, de sangue e de vísceras...

Cabe então a pergunta: e vamos suportar isto até quando? Vai ser necessária a aniquilação total deste mundo, tal como o conhecemos, para se começar tudo de novo, desde o princípio? 
 
Não é isso o que se pretende, obviamente. Por isso os brados de alerta que lanço de vez em quando. Daí a repugnância que ressuma do que aqui escrevo. Mas francamente, não consigo ficar indiferente enquanto vejo o mundo desmoronar-se à minha volta. Sonho com um mundo tolerante mas feliz. Com um mundo feito de amor, onde não caiba a maldade premeditada.

Ver o mundo ruir enquanto as gentes aloucadas batem palmas, é mais do que em silêncio eu posso suportar.


*Programa da SIC emitido em meados dos anos 90

24 de outubro de 2011

O meio caminho da vida

Luís Farinha

É da vida, meus amigos... Os anos vão passando, e nesse rodar incessante do tempo é inevitável que um dia paremos para ponderar essa verdade assustadora que até aí ainda nos não ocorrera

Inevitável, é como quem diz, porque entretidos que sempre andamos, a exaurir sofregamente as benesses desta nossa sociedade de faz-de-conta, digam lá com franqueza que motivos encontramos para reflectir, nem que seja por breves instantes, sobre os amanhãs que hão-de vir. Só quando o cansaço nos vence com as desilusões sofridas, ou quando a idade já nos não deixa continuar a correr atrás de coisa nenhuma neste frenesim inútil em que esgotamos as horas de todos os dias, é que encontramos tempo ou razões para repararmos, imaginem, no que de resto é elementar: só então nos damos conta de que a estrada que a vista alcança, à nossa frente, é mais curta - inexoravelmente mais curta - da que já deixámos para trás.
Acreditem que é então (como me sucedeu a mim...) que começamos a olhar para o caminho andado. Uma mirada que nos traz cenas duma vida que já foi, revisitando lugares a que possivelmente não voltaremos nunca mais, rostos que a pouco e pouco se foram diluindo nos recessos do tempo, emoções que jamais se repetirão.
Umas vezes, as lembranças devolvem-nos vislumbres de cores, cheiros, sabores e contactos que ainda nos trazem vislumbres de episódios felizes. É quando regressamos por instantes às boas amizades que nos aconteceram, aos relacionamentos fugazes mas intensos, aos amores que aceleraram o ritmo do coração.
Mas há também recordações que nos trazem de volta situações menos felizes; algumas, penosas até. Rostos que nos arrependemos de ter conhecido. Pessoas com almas espantosamente feias, mas que o destino teimou em nos colocar no caminho.
Este retorno ao passado, viagem que fatalmente acaba por acontecer-nos com insistente frequência a partir de certa altura, é assim como um balanço que fazemos da muita vida apressadamente vivida e que subtilmente nos vem recordar que parte dessa nossa existência vivida a correr, é construída de memórias. É como se quiséssemos reter à força: casos, coisas, rostos e lugares que constituem, afinal, a história da nossa vida e que um dia, um pouco mais adiante, se apagarão para sempre, como uma luz que se extingue definitivamente.
Forma geral, pela vida de todos nós, da minha, da vossa, meus amigos, de todos os que já atingiram a maturidade, passaram algumas coisas bonitas, raros momentos felizes... Como num ecrã imaginário, vemos passar situações que muitas vezes sentimos pena de não poder repetir; vemos pessoas que amámos e amigos que estimámos sinceramente... alguns que já não fazem parte deste mundo, mas que – assim espero - reecontraremos quando também nós partirmos para o outro lado da vida.
No entanto, há recordações que, se pudéssemos, de bom grado suprimia-mos da memória. Há rostos que melhor seria não termos conhecido. Gente sórdida colocada no nosso caminho como a lembrar-nos que o mundo não é perfeito. Autores de acções e atitudes que a moral condena e que servem apenas para medir melhor o lado bom da vida. Esses, em franca minoria, serão para sempre o contraponto duma existência fugazmente feliz... a vossa e talvez a minha!
A pouco e pouco, no rodar incessante da vida, cumprida a nossa parte, outros tomarão o nosso lugar... até que, por sua vez, sejam substituídos pelos que hão-de vir.
É então que ocorre essa verdade inquestionável: nada somos e nada representamos no revezar constante da existência. Antes de nós, milhões de milhões de seres humanos já cumpriram destinos. Depois de nós, outros milhões de milhões virão para cumprir os seus. E no meio disto tudo, francamente, quem somos nós? Bem vistas as coisas, qual terá sido, na vida que foi a nossa, a importância que julgamos ter ou tivemos?
Não... alto aí! Assim, não! Creiam que não vale a pena terem ficado tão chocados assim com as respostas que lhes ocorreram agora... Até que nasçam outras gerações que nos consigam provar que o que acabo de dizer não passa duma exorbitância, insisto em afirmar que a importância que julgamos ter é sobretudo aquela que nos atribuímos por razões que aos outros escapam. Exceptuando um ou outro caso singular em que por inteligência excepcional somos ou fomos realmente úteis ao colectivo, tudo o que sobra é vaidade pessoal e um enorme apetite de protagonismo parolo.
Parolo, mas, convenhamos, às vezes bem rendoso...