23 de março de 2011

A "Cebola" da minha infância

Luís Farinha


Tantos anos já passaram e ainda hoje não sei donde lhe veio a alcunha. Só sei que entre a criançada do bairro lisboeta onde vivíamos ela era conhecida por "Cebola". E Cebola ficou até a perder de vista atingida que foi a idade adulta.
A Cebola era uma miúda que, nas brincadeiras de rua, pedia meças a quaisquer dos rapazes. Corria ao lado dos melhores, trepava às árvores, jogava à bola como qualquer "craque" e era danada p'ra porrada quando tocava a tirar a limpo quem tinha razão ou quando as coisas não lhe corriam a jeito. Neste aspecto, mal ia a coisa quando ela tirava os seus óculos de grossas lentes e os passava para as mãos dum qualquer companheiro. Não lutava de mãos abertas… era o que faltava! Fechava os punhos e lá vai disto! E quando a refrega era mais tesa, até nada lhe custava servir pontapés certeiros.

E assim fomos crescendo. Veio a adolescência e foi por essa altura que a Cebola se foi entregando a outros passatempos. Em companhia da Rita, uma rapariga mais ou menos da sua idade, começou a manifestar gostos menos arrapazados. Criou reputação de "namoradeira". Curiosamente, porém, as suas preferências nesse campo não pendiam para os putos com quem tinha crescido. O seu fraco eram as fardas fossem elas do que fossem: magalas, marujos, carteiros (nesse tempo ainda fardados), polícias e assim por diante. Passava horas e horas, pasmada, em frente do portão de armas dos quartéis da tropa e dos bombeiros, ambos bem perto um do outro, lá no nosso bairro.

Depois veio aquela idade em que os grupos jovens se vão dispersando, cada um atrás do seu próprio destino. E a "Cebola" (Adelaide, de seu nome) não foi excepção. Depois da morte do avô Sebastião, com quem vivia, desapareceu do bairro. Havia quem dissesse tê-la encontrado por maus caminhos, mas não sei quanta verdade havia nessas informações esparsas.

Correram os anos, muitos anos, e a Cebola passou a ser apenas uma ténue lembrança dos tempos da minha infância.

Há uma vintena de anos desloquei-me ao Porto atrás duma reportagem cujos contornos já não recordo bem. Efectuado o serviço e não me apetecendo fazer de noite a viagem de regresso à Capital, decidi ir jantar à Abadia, na Travessa de Passos Manuel. Porque estava sozinho e para não morrer de pasmo escolhi uma mesa estrategicamente situada de modo a conseguir uma visão alargada da ampla sala. A certa altura, descendo a escadaria de acesso, um casal chamou-me a atenção. Ele, de cabeleira toda branca, cuidado no vestir e exibindo um porte de alguma distinção; ela, de cabelos louros, pintados, trajada com elegância e de óculos de grossas lentes. Faziam um casal agradável à vista. Como quem se sente em terreno conhecido dirigiram-se directamente a uma mesa não muito longe da minha. Quando o empregado se acercou cumprimentou-os ao jeito de quem sabe bem com quem está. "Senhor doutor, como está?" Senhora Dona Adelaide, muito boa noite".

Olhei com mais atenção, provavelmente movido pela maneira afável do atendimento.

De resto, havia na senhora algo que me chamava a atenção. Seria o porte elegante? A simpatia que irradiava? Os seus óculos tipo fundo de garrafa?

De repente, dos recônditos da memória surgiu-me uma outra Adelaide, a Cebola da minha infância, a maria-rapaz que mais tarde descobrira em si um estranho arrebatamento pelos homens fardados. A pouco e pouco, ao mesmo tempo que ia descobrindo mais afinidades, as dúvidas transformaram-se em certezas e acabei por concluir que reencontrara finalmente a amiga que, entretanto desaparecera numa qualquer esquina da vida.

E por que não confessar que gostei imenso daquele reencontro depois de meio século de separação?

Acabei o jantar, subi a escada a caminho do hotel e, já tarde, quando finalmente adormeci, acreditem que me sentia feliz...

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