23 de agosto de 2011

Este mundo não é nosso…

Luís Farinha

"Este mundo não é nosso. Nosso é apenas o privilégio de o podermos habitar por algum tempo. O tempo de uma vida"


É isso, amigos...
  
É preciso ter presente que não recebemos o mundo como herança, dos nossos antepassados. A verdade é que o tomámos emprestado aos vindouros, aos filhos dos nossos filhos.

Com efeito, este mundo não é nosso, na verdadeira acepção do termo. O mundo já cá estava quando chegámos e deixá-lo-emos quando um dia dele partirmos. Estamos aqui de passagem. E nessa condição apenas vamos aqui ficar provisoriamente.

Em boa verdade, tomámos este lugar por empréstimo, enquanto durar a nossa curta passagem pelo mundo.

É por isso que considero criminosa a forma como muitos de nós tratamos este bem perecível de que não somos donos, um bem que apenas nos foi confiado transitoriamente, talvez por se julgar o homem um ser merecedor de confiança.

Mas não o somos, como nos fartamos de provar…

Atentamos contra a Natureza das formas mais aviltantes. Queimamos as florestas. Contaminamos as águas dos rios e os mares. Conspurcamos a atmosfera que temos de respirar. Aperfeiçoamos constantemente a arte de nos matarmos uns aos outros. Dizimamos as espécies consideradas menores, os animais, nossos companheiros no planeta, quer queiramos ou não. Tudo isto, movidos pelo egoísmo, pela ambição desmedida, pela maldade dura e crua. Só porque nos consideramos donos do que nos não pertence, deste mundo, onde estamos apenas de passagem e que vamos ter de deixar aos que vierem depois.      

Quero acreditar que muitos dos atentados, que todos os dias cometemos contra o património universal, são praticados involuntariamente, por omissão ou desleixo. O mesmo não sucede, contudo, quando penso nos políticos. Se todos temos responsabilidade na preservação dos bens terrenos, é a eles, aos políticos, que cabe a tarefa de criar uma sociedade justa e equilibrada e de proceder à distribuição equitativa do que Deus pôs à disposição de todos e não apenas de alguns. Em vez disso, porém, é deles que vêm normalmente as sementes da discórdia. São os políticos, com as suas disputas partidárias, com os seus conflitos de interesses, que fomentam a desordem, instalando a regra do “salve-se quem puder”.

Há ricos cada vez mais ricos porque há pobres cada vez mais pobres. A maioria pouco tem porque uns quantos se arrogam o direito de terem tudo. A injustiça social só é possível porque essa é a única forma de sustentar os desequilíbrios da sociedade tão do interesse das classes privilegiadas.

É em nome desse egoísmo insano que o mundo é despejado das coisas boas que Deus criou. É assim que as florestas ardem, que os rios são contaminados, que a terra é corrompida, que as espécies são extintas. Tudo porque os poderes que governam as nações desleixam a sua missão, eximindo-se da responsabilidade que um dia assumiram.

Este mundo não é nosso. Nosso é apenas o privilégio de o podermos habitar por algum tempo. O tempo de uma vida. A vida, que é transitória. A ele viemos de mãos vazias e de mãos vazias partiremos um dia.

Quando alguém nos franqueia a porta da sua casa, mandam as regras de boa convivência que limpemos os pés à entrada, que lá dentro nos comportemos urbanamente, que não cuspamos no chão, nem sujemos as paredes. Se é essa a conduta que usamos numa casa que não é nossa, o que nos autoriza a abandalharmos este mundo que apenas nos foi franqueado por tempo limitado?

22 de agosto de 2011

Encontrei o Edgar!

Luís Farinha


Contas feitas, não via o Edgar há uma boa dúzia de anos. Perdera-lhe o rasto desde que, numa decisão inopinada, a meio de um dia de trabalho, nos anunciou que ia abandonar o jornalismo.

Assim, sem mais nem menos…

No dia seguinte já não se apresentou na redacção, deixando também de aparecer no pequeno bar onde habitualmente se juntava aos colegas depois de terminado o turno da tarde. Tudo isto sem adiantar razões, sem falar sobre os motivos da sua decisão, sem revelar o que iria fazer a seguir.

No princípio, ainda nos perguntávamos se alguém o tinha visto por Lisboa, mas como as respostas eram sempre negativas, acabámos por, a pouco e pouco, deixar de falar no Edgar, até que absorvidos pela agitação do dia-a-dia, ele se apagou de todo das nossas preocupações.

Foi por isso que, no Verão de 2008, estava eu sentado no muro sobranceiro à praia, na cidade espanhola de Salou, a escassos quilómetros de Barcelona, fiquei mudo de espanto quando vi passar um tipo que me fazia lembrar o Edgar.

Olhando melhor e já convencido de que aquele era mesmo o meu ex-colega, chamei: "Edgar! Ó Edgar!"

E o Edgar virou a cabeça atendendo ao chamado.

E também me reconheceu.

   - Que fazes tu aqui, malandro?

   - Se calhar o mesmo que tu - respondi.

Abraçámo-nos e ali ficámos de pé, em frente um do outro, ambos surpreendidos por nos termos reencontrado a mais de mil quilómetros do nosso habitat natural.

Disse-lhe que estava ali de férias.

   - Quanto a mim, vivo aqui - disse o Edgar, acrescentando - … por enquanto.
  
   - Tão longe de Lisboa?

   - Estava farto daquilo tudo. Do trabalho que tinha, da cidade e até do meu país.

   - Mas porquê, homem!

E a conversa foi-se desenrolando enquanto nos encaminhávamos para um barzinho ali perto...

   - Para ser franco, tanto tempo depois ainda nem eu próprio sei explicar bem o que aconteceu comigo. O mais provável é que eu tenha querido fugir da bagunçada que se vinha instalando na sociedade portuguesa, nomeadamente no nosso meio, os media.

   - Não disseste nada a ninguém. Nem connosco te abriste. Desapareceste, simplesmente, e pronto!

   - Acredita que andava a fazer um esforço do caraças. As conversas cansavam-me; já não tinha prazer no convívio; a inspiração para escrever era cada vez menor; já há muito que vinha considerando o discurso político uma treta. Era assim como um castelo de areia a desfazer-se sem que eu o pudesse evitar.

   - Nada acontece por acaso...

   - E quem te disse que a situação a que cheguei foi obra do acaso?

   - Mas tu eras um tipo aparentemente tão seguro; tão sólido nas tuas convicções...

   - Era jornalista!

   - E isso faz a diferença?

   - O ofício de redigir notícias instalou em mim o hábito de querer olhar para dentro das coisas. Com o tempo, o quê, quem, quando, onde, porquê, passaram a fazer parte do meu modus vivendi. A tal ponto, que ia sempre cair nessas estafadas regras da profissão, não só no exercício do jornalismo como também fora dele. Ultimamente, qualquer questão, fosse de que natureza fosse, era sempre rematada por uma interrogação. A subjectividade deixou de fazer parte das minhas cogitações. Punha tudo em causa e tudo tinha de ter uma explicação coerente. E na sociedade portuguesa, como bem sabes, a coerência já há muito que vinha caindo em desuso. Agora não sei... e francamente nem quero saber!

   - Nunca me apercebera - nem os nossos colegas - do buraco profundo em que te deixaste cair.

   - Onde me deixei cair ou para onde a vida me atirou. E isto não é uma desculpa!

   - Tens a certeza de que te afastaste só pelas razões que referes?

   - Aos poucos deixei de encontrar respostas para muitas coisas. Exemplo disso, válido ainda hoje, é que enquanto a sociedade científica procura encontrar formas de prolongar e melhorar a qualidade de vida das pessoas, as pessoas vão-se tornando mais e mais suicidárias. Inventam conflitos, sacaneando quem ouse atravessar-se no seu caminho. Atropelam os interesses alheios. Tudo isso com o objectivo quase sempre mal escondido - sublinhou - de tirar maior e melhor partido das benesses que a tal sociedade de faz-de-conta põe ao dispor dos atrevidos.

   - Onde tu chegaste, meu caro Edgar!

   - A vida tornou-se uma selva, meu amigo. Ou ainda não deste por isso?

   - Bem, a vida não é fácil, mas sempre se vai levando...

   - ...desde que se esteja disposto a olhar para o lado. E eu, francamente, não estava. E continuo a não estar, se queres saber.

   - Então agora vives feliz...

   - Não diria tanto, mas pelo menos não tenho que pactuar com a bandalhice que anda por lá, pela nossa terra.

   - Ainda não me disseste o que fazes agora; do que vives; porque estás aqui tão longe do teu poiso natural.

   - Vivo aqui em Salou, de um pequeno negócio. Uma lojinha que vai dando para comer, deixando que a vida vá correndo sem grandes sobressaltos.

   - Não pensas regressar a Lisboa, a Portugal?

   - Quem sabe o que nos espera? Por agora - e já lá vão uns anos - vou continuando por aqui. Amanhã logo se vê...     

16 de agosto de 2011

No corredor da morte

Luís Farinha

Hospital de Santa Marta
Serviço 3 – Sala 1 (Angiologia)



Foi aí, nesse serviço hospitalar, degradante na época, que há alguns anos, em 85 do século passado, para ser mais exacto, durante dois longos meses assisti aos episódios mais dramáticos e traumatizantes de toda a minha vida. Dois meses em que me dei conta de até onde pode chegar a degradação do ser humano quando a infelicidade se obstina em reduzi-lo a nada, a coisa nenhuma.
  
Foi nesses dois meses, longos, muito longos, no cenário da mais deprimente miséria física, a minha e a dos meus companheiros, que aprendi a soletrar a palavra solidariedade.
  
Nesses infindáveis 60 dias vi entrar e sair muita gente do Serviço 3, de Santa Marta. Uns, que como eu conseguiram ultrapassar as suas crises; outros, que acabaram ali os seus dias no meio do maior sofrimento, alguns bem em frente dos meus olhos.

O Serviço 3, de Angiologia, no Hospital de Santa Marta, é (era) onde se tratam os problemas vasculares. É lá que vão parar os casos desesperados de pessoas, principalmente do sexo masculino, que se deixaram apanhar nas malhas da arteriosclerose, da hipertensão arterial e de outras doenças do mesmo ramo. Foi ali, ao Serviço 3, de Angiologia, que eu vi chegar alguns homens com a altura normal de 1,70m e saírem de lá com apenas 80 centímetros. Sem pernas, amputadas em resultado da associação infeliz dos problemas vasculares com a diabetes.
  
Vi seres humanos acabarem reduzidos à condição de semi-homens. Ouvi, dias e noites a fio, os gritos mais angustiantes que a dor física pode provocar.
  
Sem poder valer-lhes, impotente face ao seu sofrimento, vi homens chorarem, desesperados, com vergonha de enfrentarem o mundo. Homens reduzidos a tocos disformes depois de passarem pela mesa de operações.
  
Escutei pedidos aloucados de uma morte rápida, morte que os livrasse do sofrimento que consumia os seus corpos martirizados. E vi também a força do vício que tudo subjuga, até à irracionalidade. Até ao teimoso alheamento dos danos irreparáveis que o tabaco provoca em quem já vive por um fio...

Comigo, no Serviço 3, estava internado um homem cuja história nunca poderei esquecer. Há alguns meses tinha sido amputado de uma das pernas em resultado da tal associação sinistra: má circulação-diabetes. Quando o conheci, no Serviço 3, tinha ele voltado ali porque a outra perna começara a manifestar sinais evidentes da progressão da doença. Recordo-me que havia naquele serviço hospitalar uma regra a que ninguém podia desobedecer: todos estávamos rigorosamente proibidos de fumar!
  
Compreende-se porquê...

É que o cigarro e a circulação sanguínea não casam lá muito bem. Entre ambos, o antagonismo vive sempre latente.
  
Pois o tal sujeito, enfermeiro de profissão, por isso mesmo perfeitamente consciente dos riscos que corria, nunca deixava de dar umas fumaças sempre que para isso arranjava oportunidade. Isto, apesar das advertências que todos lhe fazíamos para que parasse de fumar, e de os médicos o avisarem constantemente até onde o podia levar a sua teimosia.
  
Um dia qualquer, estava eu ansioso para saber o resultado de mais uma intervenção cirúrgica a que o tal colega de infortúnio fora submetido, quando verifiquei, à saída da sala de operações, que também ele tinha diminuído de altura: a outra perna tinha, finalmente, seguido o caminho da primeira.
  
Segundo mais tarde um médico me contou, essa situação podia ter sido evitada se, atempadamente, ele tivesse parado de fumar.
  
Nos dias que se seguiram, o semi-homem em que ele próprio se transformara não parou de chorar, lamentando a sua desgraça, incapaz de enfrentar o mundo.

Lembrei-me disto, agora, porque numa conversa entre amigos foi recordada a figura desse grande desportista, guarda-redes do Benfica e muitas vezes internacional, o Costa Pereira, ele próprio um dos que não resistiu por muito tempo após a sua passagem pelo Serviço 3, de Angiologia, do Hospital de Santa Marta.
  
Foi a recordação da sua e minha permanência nesse lugar de morte que me trouxe dos recessos do tempo memórias antigas que supunha já esquecidas, definitivamente.

4 de agosto de 2011

Um olhar para trás

Luís Farinha


Agora, quando para mim o tempo corre mais depressa, fico muitas vezes a pensar no que ficou para trás. Fico a pensar, principalmente, no bem que não consegui fazer, no amor que não fui capaz de dar, nas boas acções que deixei por praticar.

Pergunto-me o que terá sido feito de alguns dos princípios que, noutros tempos, faziam com que a vida apetecesse ser vivida. Tenho para mim – e creio não estar sozinho nesta presunção – que a despeito do regime em que muitos viveram a sua vida toda: despótico, autocrático, restritivo, era mais franco e amigo o relacionamento entre os que se queriam bem. Era praticada a boa vizinhança, uma prática de vida que não cabe no modelo pretensioso da sociedade que está na moda.            

Agora, quando o meu passado é bem mais comprido do que o futuro que há-de vir, é tempo de eu ir fazendo o balanço duma vida que já vai longa. É tempo de reflectir sobre valores que têm vindo a desaparecer, tornando o mundo menos belo, as pessoas mais feias, e o dia-a-dia cada vez mais sombrio. Será que os outros não vêem isso? Ou esses são valores que a própria vida fez cair em desuso?

Hoje, quando olho à volta, verifico que se tomam por qualidades apreciadas formas de comportamento que antes eram consideradas autênticas aberrações de carácter. E o exemplo disso é-me oferecido até pelo ofício que escolhi, o jornalismo. Na verdade, a comunicação social acabou por transformar a informação num espectáculo mediático onde a “notícia” se tornou menos importante do que o efeito que causa. Vive-se do sensacionalismo, da espectacularidade, do escândalo desbragado, da insinuação grosseira. Nos media o que ‘vende’ é o excessivo, a desumanidade, o selvagismo. E por mais que os ‘entendidos’ me tentem convencer que isso não exacerba o comportamento dos meus vizinhos, dos jovens, dos néscios e dos intelectuais, não creditarei as suas opiniões que o dia-a-dia desmente.

Há quem diga que vivemos num mundo louco... e não sei se há ou não alguma razão para tal juízo. Mas uma coisa é certa: a sociedade em que hoje vivo não é, nem pouco mais ou menos, aquela em que me fiz homem. Depois, nos idos da minha juventude ainda havia a esperança de melhores dias. Ainda se vivia a ilusão de que um dia a liberdade seria o cenário em que as nossas crianças se fariam adultas. E só isso bastava para seguirmos em frente, pesem embora as limitações absurdas que nos eram impostas.

Afinal, ao longo das últimas décadas tenho vindo a assistir à transformação da sociedade numa coisa feia, às vezes até aviltante. Vejo valores antes essenciais, transformarem-se em excrescências dum sistema corrupto. Testemunho a consagração da vacuidade e o culto do protagonismo. Com surpresa, constato que tudo se vende e compra, inclusive o respeito próprio. A palavra dada, o compromisso inviolável, passaram a ser coisas vazias de sentido. A vergonha, que antes açaimava a indignidade, está hoje afastada dos compêndios da conduta pessoal. A honra tornou-se elástica e o amor-próprio, de, tão incómodo, está a cair em desuso. Hoje, rimo-nos do que noutros tempos daria vontade de chorar e tomamos como completamente fora de moda princípios de que antes nos orgulhávamos.

É esta a sociedade glorificada pelos que aprenderam a retirar dividendos generosos desta confusão imensa.

Para muitos, porém, é também como uma queda no vazio absoluto, irreversível.