25 de maio de 2011

Desculpem, estou com medo!

Luís Farinha

Como já vem sendo hábito em Portugal nos períodos que antecedem as eleições legislativas, vulgarmente designados de “campanhas eleitorais”, assiste-se uma vez mais ao palanfrório grotesco exibido pelos políticos de faz-de-conta que se assanham para conquistar ou dar continuidade ao poder que lhes permite satisfazer a sua ânsia de protagonismo. Só que desta vez a coisa atinge tal desbragamento que já chega a meter medo.

Abismado com a troca de galhardetes ouvidos a toda a hora na televisão, o Zé portuga deita as mãos à cabeça interrogando-se: “e agora, o que é que eu faço?”

Não sabe, como eu não sei, como ninguém com um palmo de testa pode saber.

Bem pode Mário Soares recomendar do alto do seu saber de experiência feito que “não lhes vale de nada andarem a insultar-se uns aos outros”, lembrando que “a situação do país é demasiado difícil para andarem às turras uns com os outros”. E bem recomenda: “eles vão ter de se associar para salvar Portugal”. Mas ‘eles’, os políticos de fancaria que nos coube por azar a nada dão ouvidos: de cabeça perdida só se ouvem a si próprios atribuindo-se uma capacidade de discernimento que, se alguma vez existiu, já se esvaziou há muito.

Para tornar a coisa ainda mais esculhambada do que já está vêm ainda os ‘artistas secundários’ deste circo de saltimbancos ajudar à festa com rábulas revisteiras de qualidade menor como aquela que ouvi na passada terça-feira saída da cabeça dum frequentador da AR conhecido pela sua aversão aos artefactos de trabalho dos jornalistas. Não tomei nota das falas porque já me vai faltando pachorra para isso, daí que apenas me tenha dado conta que a chalaça envolvia um submarino com um senhor em bicos de pés. Imagem importante numa altura em que o país precisa urgentemente de gente capaz de o salvar do abismo.

Olhando os interpretes da ópera-bufa em que foi transformado um dos actos mais importantes da função política em Portugal – eleger o governo da Nação – estou sem saber em quem devo votar, já não direi em “alguém capaz de encontrar soluções adequadas para levar o barco a bom porto” – tarefa que pelo que tenho observado ultrapassa o talento dos intervenientes – mas que, pelo menos, em alguém que tenha arte e engenho suficientes para não deixar que ela (a Nação) se afunde irremediavelmente. Honestamente, não sei!

Pior ainda é não me sentir capaz de optar – já não digo: pelos melhores - mas pelo menos por quem menos estrago seja capaz de causar depois de eleito. Assusta-me a eventualidade de errar por não ter sido capaz de escolher melhor. De não ter sido mais perspicaz. E o que temos está à vista.

É que, para cúmulo do meu desnorteio, a ninguém ouvi propostas de actuação claras e concisas. Pelo contrário: tudo o que se parece com argumento válido vem sempre embrulhado em discursos labirínticos, preparados de molde a evitar que seja tomado como compromisso sério, do qual haverá que prestar contas. Em vez de planos de acção concretizáveis, vem o acinte; no lugar da reflexão ponderada, proferem-se diatribes que não ajudam a desvendar novos caminhos; o dedo em riste comanda os discursos; a banalidade é o recurso usado por quem pouco tem para dizer.  

O insulto soez, a culpabilização gratuita, o escarnecimento reles e a zombaria mesquinha têm vindo a servir de argumentos numa acção que, em princípio, se destina a escolher os mais capazes de corrigir os erros até hoje praticados por quem deixou Portugal chegar ao estado lamentável em que se encontra. Entretanto, seja qual for o resultado conseguido nesta campanha de tão baixo nível uma coisa restará na memória dos cidadãos: a menoridade política que, ultrapassando fronteiras, começa a reflectir-se na forma como ultimamente temos vindo a ser tratados pelos nossos compinchas europeus.

Atavismo resignado
"Um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio, fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora, aguentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de misérias, sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia dum coice, pois que nem já com as orelhas é capaz de sacudir as moscas..."
                                                                                         Guerra Junqueiro 
                                                                                          (escrito em 1886) 

10 de maio de 2011

Os “retornados”… lembram-se?

(Quarenta anos depois)

Luís Farinha

Foi há cerca de quatro décadas que ocorreu o regresso do meio milhão de portugueses, homens, mulheres e crianças, que tinham procurado em África o que aqui lhes tinha sido negado: uma forma de, através do trabalho, conquistarem uma vida digna.

Mais de quinhentas mil pessoas que, de repente, se viram na contingência de abandonar às pressas as suas casas, os seus bens, os seus negócios, as amizades, até alguns familiares que entretanto optaram por ficar, enfim... meio milhão de seres humanos que, de um dia para o outro se viram despojados de tudo aquilo que lhes havia demorado muitos anos a construir. Pessoas que apressadamente regressaram às suas terras de origem, embora entre elas viessem também muitos que, entretanto, já tinham nascido naquelas paragens africanas.

O retorno desse grosso contingente constitui hoje, sem dúvida, um capítulo sombrio da história portuguesa. Um pedaço de história que põe a nu as fragilidades políticas do pós 25 de Abril, deixando às claras a falta de vocação política dos homens que então chamaram a si a resolução dos grande problemas nacionais.

Ainda hoje, e já lá vão quatro décadas, não lembrem aos deslocados de África as condições em que se viram obrigados a deixar os imensos territórios que entretanto aprenderam a amar, e a recepção que aqui lhes foi feita quando, de mãos a abanar, saíram dos aviões e navios que os trouxeram.

Muitos, durante anos habituados a viver num ambiente mais aberto e com um certo nível de vida viram-se constrangidos a procurar familiares e amigos no interior de Portugal continental, pessoas que os ajudassem a ultrapassar a miséria moral e física em que se tinham visto colocados. Outros, também aos milhares, sem raízes familiares a que recorrer, foram metidos em hotéis, pensões de recurso e até em parques de campismo, à espera de melhores dias. 

Enfim... foi um desnorteio sem fim a que os políticos de então não conseguiam dar resposta adequada e que durou alguns anos a debelar.

A tudo isto - convém lembrar - acrescente-se a fauna de oportunistas que, como abutres, viram nos planos de emergência constituídos às pressas pelas entidades governamentais  (para apoiarem a instalação dos retornados)  uma forma de enriquecer à custa da exploração vergonhosa destes muitos milhares de homens e mulheres desenraizados à força. Foram transformadas em pensões muitas instalações adaptadas rudimentarmente onde tudo faltava, inclusive condições mínimas de higiene. Tudo isso na mira do lucro fácil proveniente dos subsídios (IARN) para o efeito canalizados pelo governo. Completado o plano de evacuação, e numa espécie de selecção natural, assistiu-se depois a um fenómeno muito curioso: uma vez na metrópole, como então se dizia, os deslocados de África dividiram-se em dois grandes grupos: de um lado os que adoptaram e transformaram o Rossio numa espécie de “muro das lamentações”, local onde aos milhares se encontravam diariamente para falar da sua infelicidade, contando (e, quantas vezes acrescentando) o que tinham deixado em África, ao mesmo tempo que criticavam a falta de apoio a que se sentiam com direito. Do outro, os que - uma vez instalados, às vezes muito mal - decidiram arregaçar as mangas e começar tudo do princípio, na base do trabalho duro. Bem perto de nós, onde quer que vivamos, há muitos exemplos dessa gente abnegada que cedo compreendeu que a sua vida tinha de ser refeita a partir da estaca zero. Cerrando os dentes de raiva, famílias inteiras atiraram-se ao trabalho e, mostrando a capacidade dos portugueses para se adaptarem às circunstâncias mais adversas, depressa deram mostras da massa de que eram feitos.

Já passaram muitos anos, mas ainda agora eles podem ser encontrados por aí, à frente dos pequenos negócios que montaram, nos empregos que arranjaram, no trabalho duro que descobriram. Outra vez realizados, fazem a sua vida, continuando a usar uma forma de ser e estar que a distância de milhares de quilómetros não conseguiu diluir: felizes, gostam de conviver entre si, desde que não lhes falem da “exemplar” descolonização com que os políticos diletantes desse período inesquecível deram cabo das suas vidas.

O regresso deste meio milhão de homens e mulheres escorraçados das terras longínquas a que um dia haviam aportado em busca de melhor vida foi uma das páginas mais dramáticas da diáspora lusitana. Foi uma odisseia homérica que os jovens terão hoje dificuldade em compreender. Não foi uma página brilhante da nossa história, um episódio que nos honre enquanto Nação, mas pode servir de exemplo na actual conjuntura político-social em que mais uma vez é dada prova da vocação dos portugueses para improvisarem soluções que não resolvem mas adiam os problemas sérios que ciclicamente lhes são postos. Não estávamos preparados há 40 anos para enfrentar a calamidade que a descolonização “exemplar” desencadeou e de novo somos apanhados agora com as ‘calças na mão’ quando a catástrofe económico-social se abate sobre nós. 

Afinal onde estão os ‘cérebros’ que, enfatuados, arrotam postas de pescada? Por onde param os vendedores da banha de cobra que tudo cura, desde a dor de dentes à queda do cabelo, à dor nas costas e aos calos dos dedos dos pés? Procurem-nos, alguns continuam em cima dum palanque, microfone na mão, a debitar promessas. Outros, já cansados de tanto governar, vivem na morna quietude dos gabinetes para si preparados nas muitas empresas de enriquecimento fácil e rápido que há por aí a granel.

7 de maio de 2011

Só me resta a memória…

Luís Farinha

Agora, quando os anos que me restam são bastante menos do que os que já vivi, dá-me, a miude, para lançar uma olhadela ao passado, relembrando cenas duma vida que já foi, revisitando lugares onde jamais voltarei, revendo caras e corpos que, a pouco e pouco, se vão diluindo nas brumas do tempo.
 
Umas vezes, as lembranças trazem-me cores, cheiros, sabores e contactos que me fazem bem à alma. É quando regresso por instantes às amizades que vieram para ficar, aos relacionamentos fugazes mas intensos, aos amores que aceleraram o ritmo do meu coração. Outras vezes, as recordações trazem-me de volta situações menos felizes. Rostos que me arrependo de ter conhecido. Pessoas com almas espantosamente feias, mas que o destino teimou em colocar no meu caminho, fazendo-me tropeçar vezes sem conta.
 
Este retorno ao passado, que agora me acontece com mais frequência do que antes, é assim como um balanço da muita vida vivida até ao presente. É como se quisesse reter à força: casos, coisas, rostos e lugares que constituem, afinal, a história da minha vida e que um dia destes se apagarão para sempre, como uma luz que se extingue definitivamente.
 
Pela minha vida passaram algumas coisas bonitas, uns quantos momentos felizes... e essas são as memórias que me acodem com mais frequência . Como num ecrã imaginário, vejo passar situações que tenho pena de não poder repetir. Vejo pessoas que amei e amigos que estimei sinceramente. Alguns que já não fazem parte deste mundo, mas que - segundo dizem - acabarei por reencontrar quando eu próprio partir, também, para o outro lado da vida.
 
Mas há recordações que me apetecia apagar da memória. Há rostos que melhor seria não ter conhecido. Gente sórdida colocada no meu caminho como a advertir-me que o mundo não é perfeito. Autores de acções e atitudes que a moral condena e que apenas servem para fazer o contraponto do lado bom da vida. Esses, em franca minoria, serão para sempre a parte dissonante duma existência razoavelmente feliz, a minha!
 
A pouco e pouco, no rodar incessante da vida, cumprida a minha parte outros tomarão o meu lugar... até que, por sua vez, sejam rendidos pelos que vierem depois.
 
É então que me ocorre uma verdade inquestionável. Nada somos e nada representamos neste revezar constante. Antes de nós, milhões de milhões de seres humanos já cumpriram destinos. Depois de nós, outros milhões de milhões virão para cumprir os seus. Neste quadro, a insignificância do que somos devia bastar para que nos não atrevessemos às exibições patéticas de sentimentos menores como a arrogância, a vaidade, a presunção burlesca.        

É que, quer acreditem ou não, no meio disto tudo pouco mais somos que um mero dado irrelevante...
 

5 de maio de 2011

A senhora do solar

Luís Farinha

 Todas as noites, ao princípio da madrugada, o telefone tocava. Lá longe, no Norte, em Cabanas de Viriato, sozinha no seu velho solar, a senhora tinha apenas o rádio a acompanhá-la. Como tantas vezes acontece (ou acontecia, nos tempos em que a televisão era ainda uma vaga promessa para os portugueses), havia sempre quem fizesse dos homens e mulheres da telefonia objecto das suas fantasias. Daí, as cartas que recebíamos, os telefonemas, e não só.
   E a senhora de Cabanas de Viriato (cujo nome não vem a propósito), tinha criado e desenvolvido uma acesa admiração por aquela voz que, de Lisboa, todas as noites lhe adoçava a solidão.
   O pretexto dos telefonemas, esse era sempre o mesmo: pedir um disco da sua preferência. A conversa, porém, extravasava sempre desse pedido singelo.
   A partir de certa altura comecei a receber cartas longas, muito longas, em que me falava do seu exílio voluntário nas altas terras da Beira, para ficar longe desta Lisboa que, dava ela a entender, lhe tinha sido madrasta.
   Tanto a sua voz, como a forma como se exprimia ao telefone (e mais tarde por escrito) deixava adivinhar o nível elevado da sua condição. Na verdade, falava e escrevia como alguém que tivera uma educação acima da mediania. Não pactuava com a vulgaridade, e o que dizia era profundo mas sem qualquer assomo ou cedência ao tão vulgar "namoro" de circunstância. De resto, se alguma admiração havia, como era notório, nunca a mesma passou da fase platónica, e a confirmá-lo está o facto de eu nunca ter conhecido pessoalmente a minha ouvinte de Cabanas de Viriato.
   Ela sim, conheceu-me, em circunstâncias que não vêm a propósito nem são importantes para a estória que vos conto.
   Uma noite, como se tornara habitual, a chamada lá veio. Estávamos no Inverno, um daqueles Invernos rigorosos de antigamente, quando as estações do ano, em Portugal, eram coisa para se levar a sério. Fazia um frio de morrer, mais ainda lá para as serrarias da Beira Alta, onde a aspereza do clima é que marcava o ritmo do dia-a-dia. Apesar dos mais de 40 anos passados, ainda me recordo de a ouvir comentar o frio que fazia e do aquecedor eléctrico que tinha junto à cama, para se aquecer. Lembro-me também de me falar da serviçal que diariamente lá ia para a lida caseira e que, logo o Sol se punha, regressava à sua própria casa e à família, deixando-a sozinha, até ao dia seguinte.
   Como de costume, também nessa noite depois de alguns minutos de conversa despedimo-nos afavelmente e desligámos, não sem que antes lhe recomendasse cuidado com o aquecedor eléctrico.

 No dia seguinte, pela manhã, cumprindo um ritual que ainda hoje faz parte do meu quotidiano, abri o jornal para me inteirar do pouco que nesse tempo chegava ao conhecimento público. Numa página interior algo chamou a minha atenção: a foto de uma casa calcinada pelas chamas, encimada por um título em caixa alta, mostrava o que desde logo me fez estremecer:

CHAMAS CONSOMEM SOLAR 
EM CABANAS DE VIRIATO
PROPRIETÁRIA MORREU NO INCÊNDIO

 No seu desenvolvimento, a notícia explicava que o fogo devia ter sido provocado pelo aquecedor que fora encontrado junto à cama.

 Um par de meses depois recebi na rádio a visita de um homem idoso, vestido com esmero. Identificando-se com familiar da minha ouvinte longínqua pretendia saber que tipo de relação tinha eu mantido com a sua parente chegada. Expliquei-lhe que a não conhecera pessoalmente, que a “relação” não passara de um caso igual a tantos outros que, nesses tempos longínquos, eram vulgares entre os locutores e os seus ouvintes. Talvez uma forma encontrada para ajudar a mitigar a solidão dos que viviam sós, acrescentei.  

 Aquele relacionamento com a minha desconhecida admiradora terminou assim, abruptamente, dele restando apenas uma memória esparsa que de quando em quando me visita fugazmente, sempre que, de relance, dou uma olhadela ao passado que deixei para trás.

Como hoje...