26 de junho de 2011

Falamos disso depois…

Luís Farinha

A que se deve atribuir a dificuldade de comunicação entre novos e velhos e vice-versa?

É cada vez mais notória e comum a dificuldade de comunicação dos jovens com as pessoas mais velhas, sendo certo que o mesmo se passa na situação inversa.
No fim de contas, o que será que está na origem desta espécie de divórcio entre as gerações de ontem e de hoje?
O que lhe dará motivo?
Porque será que os filhos não dialogam com os pais? E porque será que estes manifestam uma indisfarçável impaciência sempre que os filhos lhes vêm com os seus problemas pessoais?
É uma pergunta que me faço com muita frequência...
Noto que é até vulgar acontecer que os jovens se mostrem mais dispostos a “abrir-se” com estranhos do que com os pais. Do meu ponto de vista, isso é sinal de que os pais não souberam (ou não se mostraram disponíveis) para fazerem uma pausa nos seus próprios afazeres e preocupações para se ocuparem das dúvidas e dos problemas dos filhos.
E o resultado é o que está à vista, claro...
Em recurso, os jovens seguem habitualmente dois caminhos: fecham-se em si mesmos, interiorizando e deixando avolumar preocupações que não têm capacidade de resolver sozinhos ou procuram junto de outros jovens, que se debatem com as mesmas dificuldades, a solidariedade que, nestes casos, nem sempre é a mais desejável.
Nós, os mais velhos, temos uma tendência acentuada para vermos nos filhos as eternas crianças que eles muitas vezes já não são. Daí, acharmos que “ainda é cedo” para, em conjunto, abordarmos frontalmente certas questões. Esquecemo-nos que os jovens de hoje crescem mais depressa, e que também mais cedo são confrontados com situações que, nos tempos idos, só apareciam muito mais tarde.
Minimizamos o seu discernimento; esquecemo-nos de ter em conta as suas opiniões e com isso, fazemo-los, enfim, sentirem-se rejeitados como pessoas e como peças importantes do núcleo familiar.
Normalmente, só quando é tarde de mais é que nos damos conta de quanto fomos egoístas, ocupados que andávamos com as nossas próprias questões pessoais.
Na minha opinião, perdemos a oportunidade gratificante de assistirmos e acompanharmos a sua transformação de crianças em adolescentes e depois em seres adultos. Quando acordamos do egoísmo em que andámos mergulhados enquanto os filhos cresciam, é que nos apercebemos que lá em casa há mais um homem ou uma mulher, um elemento familiar que conhecemos mal, alguém que quer viver a sua própria vida, de preferência sem a intromissão tardia dos “velhos”, velhos com quem, afinal, nunca conviveram de perto, com quem nunca, de resto, tiveram grandes afinidades.
Claro que esta é a minha forma pessoal e fria de ver o relacionamento entre gerações e – penso eu - a razão de queixas muitas vezes ouvidas.

18 de junho de 2011

Quem o feio ama...

Luís Farinha

   Pitigrilli dizia que “um rosto belo é uma caveira bem vestida” e, se bem pensarmos, não deixava de ter razão...

   Na verdade, quando elogiamos a beleza, pretendemos significar o quê, exactamente? Que alguma coisa satisfaz o nosso conceito do que é belo, de algo que condiz com a nossa concepção pessoal do que é bonito ou feio. Porém, essa concepção muda de pessoa para pessoa. Não tem que ser coincidente, como é óbvio. Então, não é o próprio povo, que na sua imensa sabedoria costuma dizer que... “quem o feio ama, bonito lhe parece”?

   É isso... o que é belo para mim, não tem que ser igualmente bonito para outra pessoa qualquer. É por isso, porque há essas diferenças, que o mundo se equilibra tão bem.

   Há quem explique, com rara propriedade, o facto de os feios ou feias sempre arranjarem alguém que por eles se apaixonam. Dizem essas pessoas, ainda baseadas na voz do povo, que... “quando se faz uma panela, logo se arranja uma tampa para ela...!” O que talvez queira dizer que o que nos parece menos belo a nós, pode constituir para outros a expressão máxima da beleza.

   Lembro-me, quando há algumas décadas frequentava com assiduidade o velho Café Lisboa, não o de agora, mas o outro, ali mesmo junto ao Parque Mayer. Havia lá um empregado que, quando via entrar ou passar à porta uma mulher bem nutrida, coisa aí para cima dos 100 quilos, entrava em completo desnorteio. E que ninguém se lembrasse de rir ou de dizer o que fosse em desabono daquelas figuras excelsas que punham o nosso amigo no mais incontrolável delírio...

   Só visto!

   Quantas vezes tenho observado em festas sociais, restaurantes, boites, teatros e cinemas... mulheres lindíssimas completamente “babadas” por indivíduos sem qualquer graça aparente?

   Quantos casos conhecemos de homens com óptimas figuras, bem apresentados, insinuantes, cultos, que vivem amores tórridos com mulheres que consideramos autênticos “cavacos”? Estou a lembrar-me do príncipe Carlos, do Reino Unido, da princesa Diana e da Camilla Parker-Bowles, Duquesa da Cornualha…

   Não sendo o Frank Sinatra ou o Charles Aznavour o que se pode chamar de “belos homens”, quantas mulheres belíssimas não se apaixonaram por eles ao longo da vida?
  
   Enfim, o conceito de beleza muda de pessoa para pessoa. Aliás, como muda, igualmente, de época para época. Quem não se lembra das paixões escaldantes desencadeadas pelas curvilíneas Gina Lolobrígida, Sofia Loren e Marilyn Monroe ? Contudo, se compararmos a sua beleza com a que hoje se vê nos desfiles de moda, ou no cinema... bom, são para esquecer!

   E quem fala dos símbolos femininos, pode falar também dos masculinos, evidentemente. Qualquer avó da actualidade ficava extasiada quando, há alguns anos, via no cinema as figuras insinuantes do Charles Boyer, do Elvis Presley ou do Cary Grant. Porém, eles apenas fariam rir as moçoilas de agora.

   É assim!

   O conceito da beleza é individual e muda conforme os olhos que a vêem, como mudam ciclicamente os padrões do belo, que hoje se regem de uma maneira diferente de ontem e de amanhã.

   Por isso, aos mais jovens aqui fica um conselho... “quando ouvirem os vossos pais falarem de beleza, por favor não se riam! Lembrem-se só que um dia, lá mais para diante, os vossos filhos também podem cair no riso quando vos ouvirem falar, enlevados, da Sharon Stone, da Irina Shayk, do Brad Pit, do George Clooney, do Ronaldo, da Angelina Jolie ou da Catarina Furtado. 
      

11 de junho de 2011

Cansaço!

Luís Farinha


“Não ligues… deixa p´ra lá!”
“Vive e deixa viver…”
“Ó homem, leva as coisas a brincar!”

Com pequenas variantes, é esta a tónica dos conselhos que ouço dos meus amigos quando lhes falo da minha dificuldade em aceitar a vida como ela é neste tempo sem espaço para sonhar os tempos que hão-de vir.

Ouço-os mas não sou capaz de me desligar dum conceito que a vida me ensinou: "quem sabe, faz… quem não sabe dá conselhos". A verdade é que nenhum desses que me aconselham a encerrar-me numa redoma dá sinais de que siga, ele próprio, a espécie de autismo que me sugere.

Acreditem, sinto-me mesmo cansado!

Estou cansado de assistir, impotente, ao alegre aviltamento desta nossa Nação que vai avançando no tempo, trôpega, aos trancos e solavancos.

Estou cansado de políticos sem palavra; sem carácter; sem sagacidade; homens e mulheres interessados exclusivamente em alimentar o seu avoado protagonismo. Como cansado estou das suas promessas ocas.

Confesso a minha incapacidade de olhar indiferente para a indiferença que noto nas gentes do meu país face ao quadro misérrimo em que vivem e que só Deus sabe por quanto tempo mais continuarão a viver. Por culpa da sua mansidão cúmplice, evidentemente.

Estou cansado de esperar, em vão, que Portugal se livre da mediocridade a que a governação lamentável duma sucessão de homens sem brilho o tem vindo a condenar sem esperança.

Gostava de ter força bastante para sacudir com fúria a consciência adormecida dos homens e mulheres do meu país. Mas sinto-me já cansado do esforço que tenho feito. Em vão.

Gostava de conseguir despertar nesses homens e mulheres quebrantados pela inércia tíbia em que sempre viveram, o seu direito à indignação. Queria poder explicar-lhes que nada os obriga a aceitar esta indigência a que se julgam irremediavelmente condenados. E que o país onde nasceram pode ser tão próspero como outros tão pequenos quanto ele. Sobretudo, queria levá-los a acreditar na verdade indesmentível que, se eles quiserem, Portugal também pode ser uma nação com futuro e todos nós mais felizes.

Mas estou cansado, podem crer. Um cansaço feito de desilusões que vêm dum tempo que me parece eterno. Desde há muito que venho passando mensagens de sensibilização em meios de comunicação os mais diversos, mensagens construídas de palavras umas vezes angustiadas, outras, muitas outras insubmissas, todas elas incómodas, eu sei.

E o resultado desse esforço? Alheios à prática duma cidadania plena, os portugueses vão continuando a viver um quotidiano sem perspectivas, encerrados nos seus pequeninos universos pessoais onde os valores maiores são constituídos de telemóveis, telenovelas, popós repletos de extras, jogos da bola e viagens ao estrangeiro, num desfile de parola vaidade, num faz-de-conta construído de créditos por liquidar.

Insânia? Bobagem? Idiotice? Seja lá o que for, a verdade é que tanta mansidão faz dos portugueses cidadãos impressionantemente passivos, roubando-lhes o discernimento que seria desejável num período tão crítico como este que atravessamos. Fazer como a avestruz numa altura destas, mais do que lamentável deve ser encarado como profundamente melindroso para quem, inapropriadamente, a si próprio se atribui a qualidade de cidadão responsável.

O namoro noutros tempos

Luís Farinha


Recordar é, como já vos disse, um dos meus entretenimentos preferidos no tempo que hoje vivo. Não é raro, nesse exercício a que me entrego, quedar-me perplexo com as diferenças profundas que se foram introduzindo no quotidiano desde que, ainda jovem, os apelos da curiosidade me criaram o hábito de querer saber os ‘porquês’ das coisas. Recusando a recorrência ao ‘acaso’ - a fórmula comummente usada e aceite para justificar os acontecimentos menos triviais - cedo me habituei a procurar explicação para as singularidades que o dia-a-dia nos traz.

O episódio que hoje vos trago, ocorrido há mais de 60 anos, se contado aos jovens de hoje corre o risco de ser tido como mais um exagero dos que já passaram a fasquia dos 80. Porém, como prometi no início deste blogue todas as estórias que aqui trago são marcadas pela fidedignidade de quem as viveu ou que delas obteve pleno conhecimento.

A ideia de vos contar este episódio ocorrido da minha juventude surgiu-me quando lia mais um capítulo do livro “Amor e sexo no tempo de Salazar”, da jornalista Isabel Freire. Trata-se dum documento que recomendo vivamente aos que constatam com reserva a dificuldade manifestada pelos mais velhos em perceber como o mundo poude mudar tanto, depois dos anos 50 do século passado.    

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Eram irmãs e muito bonitas. Filhas dum comerciante estabelecido no bairro da Penha de França, em Lisboa, as duas jovens aliavam à sua beleza a compostura própria das criaturas de condição. Teriam a minha idade nesse tempo, à volta dos 18 anos.

Conheci-as por puro acaso em circunstâncias que já não recordo com muita nitidez. Uma delas, era namorada de um amigo meu e, estou hoje convencido, terá sido esse pormenor que propiciou a aproximação. Fosse lá como fosse, a verdade é que acabei por pedir namoro à outra irmã. Cabe aqui lembrar que o meu amigo e a namorada só saíam juntos se e quando acompanhados da mana. Foi numa dessas saídas, ao fim da tarde, para a costumeira voltinha pelo bairro, que tive a ousadia de lhe manifestar a minha admiração. Avesso ao uso de preâmbulos introdutórios em casos que requerem acção prática, avancei com o pedido de namoro.

“Que já tinha reparado em mim quando há algum tempo eu tinha parado para os cumprimentar, que não lhe era de todo indiferente, mas que não aceitaria o pedido de namoro sem autorização dos pais”, foi a resposta que obtive. De qualquer modo, prometeu um encontro para o fim da tarde do dia seguinte para que pudéssemos conhecer-nos melhor. Foi um encontro que me ficou grudado na memória devido ao inusitado da situação: impaciente, à hora marcada lá estava eu de atalaia à porta da jovem, até que a vi surgir no patamar da escada acompanhada de duas senhoras, a mãe e creio que uma tia. E lá fomos, caminhando em estilo de passeio, as duas senhoras à frente e nós atrás, afastados uns três metros das acompanhantes.

Não me recordo do que disse e ouvi durante a passeata pois a confusão em que me sentia afundar impedia-me de conciliar as ideias…

Pouco treinado nas coisas do amor platónico, confesso que fiquei mudo de espanto. Não conseguia evitar de pensar que o nosso namoro ia ser sempre assim, em grupo, para garantir a castidade da minha namorada. A imagem do meu amigo e das suas passeatas com a prometida, com guarda à vista, não me saia da retina.

E agora, o que é que eu faço? Perguntei-me.

As minhas dúvidas dissiparam-se dois ou três dias depois…

Num fim de tarde alguém bateu à porta da casa dos meus pais, onde eu vivia. Aberta a porta, depara-se-nos um senhor de idade avançada, fato clássico de muito bom corte e postura extremamente cuidada. Após ter confirmado que aquela era a morada que procurava, identifica-se como padrinho da jovem a quem me declarara e pede que o receba afim de termos uma breve troca de palavras.

Escorreito no falar, expõe então ao que vai…

“Quem era eu, com quem vivia, a minha ocupação, quem eram os meus pais, o que faziam, a minha escolaridade, os meus projectos de vida e se eu sabia bem quem era a jovem a quem me declarara”. Finalmente: “quais as intenções que me levaram ao pedido de namoro?”

A tudo respondi tão escorreitamente quanto consegui; a minha mãe, essa ficou muda e continuou calada até ao fim… e o meu pai que não chegava!
Finalmente o senhor levantou-se da cadeira, agradeceu tê-lo recebido e retirou-se.

E mais uma vez: “e agora, o que é que eu faço?”

Nunca me tinha visto numa situação igual ou parecida com a que acabara de ter lugar, nem imaginava que ‘aquelas’ coisas funcionavam assim.

Sem que nada tivesse ainda contado à minha mãe acerca daquela história, esta olhou-me, ainda muda, até que lá conseguiu tartamudear: “Mas o que é que se passa? Quem é este senhor? O que é que tu fizeste?”

Expliquei como pude que pedira namoro a uma rapariga que conhecera.

“E afinal, o que é que o senhor queria?”

A resposta veio dois dias depois numa carta entregue pelo carteiro. Era assinada pelo o pai da beldade, o destinatário era eu próprio e o texto trazia a autorização para o namoro, sem esquecer de reiterar o desejo de que eu merecesse a confiança que me era concedida.

Meus caros, o susto foi tão grande, a certeza de que jamais me poderia permitir um gesto de ternura, por pequeno que fosse, que só encontrei uma saída: numa carta que enderecei ao pai da jovem apresentei os meus agradecimentos pela sua aquiescência ao pedido de relacionamento com a sua prendada filha, mas lamentava ter de comunicar que dava por sem efeito o projecto e o pedido de namoro por razões de ordem familiar que me levavam a trocar inesperadamente Lisboa pela cidade do Porto.

Foi uma mentira mal amanhada, eu sei, deselegante e talvez atabalhoada, como alguns de vós, muito justamente, não deixarão de considerar. Uma desculpa desastrada e desastrosa, até porque continuei a viver na Graça, em Lisboa, por mais 30 longos anos.

Era assim nos tempos da minha juventude. Por isso, como referi no princípio, não podem deixar de me espantar muitas das mudanças que o tempo foi introduzindo no nosso dia-a-dia actual. O namoro, que antigamente correspondia ao período de convivência que antecedia o noivado e depois o casamento passou a querer dizer uma coisa inteiramente diferente. Namoro, hoje, equivale ao que há 50 ou mais anos era chamado de concubinato, mancebia, amiganço. Creio até que essa coisa de pedir namoro desapareceu dos hábitos dos e das jovens. Pois se as moças conhecidas, mormente as que fazem as delícias da imprensa cor-de-rosa, anunciam na imprensa, com toda a naturalidade, que estão de “namoro” pegado com fulano, ou que acabaram o “namoro” com beltrano, pormenorizando que deixaram de viver em comum e considerando-se disponíveis para um novo amor…

“No meio é que está a virtude” era um ditado muito em voga nos tempos de antigamente. ‘Virtude’ queria, nesse adágio popular, significar o que está bem, o que é aceitável, o que pode ser considerado como razoável por uns e outros, por diferentes que sejam as suas convicções. Contudo, no que respeita aos usos e costumes que marcam o correr das gerações, parece que a virtude deixou de funcionar como a baliza que, nos tempos idos, estabelecia os parâmetros do comportamento racional e o funcionamento da sociedade em que nos é dado viver.

Entretanto, cautela!

Não quero significar que gostaria de desenterrar esqueletos. Bem longe de mim a ideia de me pôr à espera, onde a terra termina e o mar começa, na esperança que do nevoeiro surjam os fantasmas de outrora. Ora tendo-me a vida ensinado, entre outras coisas, que nada é imutável, que os conceitos mudam à velocidade da luz e que é inimaginável alguém pretender que o mundo deixe de girar, só muito mais adiante fui capaz de começar a aceitar como inevitáveis as mudanças que o dia-a-dia nos traz. Contudo, talvez hoje já seja capaz de compreender com relativa facilidade a carta que o pai da jovem lá do meu bairro me escreveu e a visita que me fez o seu amável padrinho.

Uma coisa é certa: peço-vos desculpa mas não consigo deixar de sentir saudades do tempo em que o namoro, tal como o conheci, significava uma coisa diferente daquela a que hoje a mesma palavra se refere.

Coisas de velho, enfim…       


8 de junho de 2011

Este é o novo Portugal que ajudámos a “construir”

Luís Farinha

Para se abordar a questão da delinquência com a frontalidade que a sua gravidade justifica, não podemos deter-nos em pormenores subjectivos que apenas confundem e embaraçam a compreensão desse fenómeno na sua globalidade. Por mais respeito que nos mereçam os elementos sérios das comunidades brasileira, africana, cigana e dos países do Leste europeu, temos de nos render à evidência de que muita da violência urbana que hoje alastra entre nós provém desses grupos étnicos, porém não isentando nesta abordagem, obviamente, a que é cometida pelos que nasceram aqui, neste Portugal velho de quase mil anos. A delinquência, e com ela a insegurança que gera, não são consequência exclusiva da cor da pele mas de circunstâncias que devem (deviam) ser procuradas mais a montante: na pobreza, na promiscuidade dos bairros sociais da periferia, na miscigenação inter-raças que não existe de facto, no racismo latente nos brancos, nos negros, nos ciganos e nas outras etnias minoritárias e, sobretudo, nos padrões de vida impostos por aquilo que teimamos em chamar de “a sociedade moderna”. Enfim, forma geral a marginalidade tem origem em toda uma série de factores que nunca são enfocados porque fazem parte do que se convencionou designar por politicamente incorrecto. Algo que não convém ser esmiuçado pela classe política, pelos cronistas vitalícios e pelos bem instalados no sistema. Refiro-me, neste último grupo, naturalmente, aos espertalhões que, por artes e manhas, têm vindo a conseguir sustentar a sua fome insaciável de protagonismo (e de fortuna) empoleirando-se nos altos galhos preparados pelos seus confrades.


A verdade contudo é que a violência urbana, incluindo na sua prática os que, inclusive, nunca esperaríamos ver nela envolvidos faz hoje parte do quotidiano dos portugueses. Já aqui o referi anteriormente, mas nunca será de mais recapitular alguns factos que alteraram profundamente o nosso dia-a-dia, muito em especial o daqueles que conheceram outra forma de vida, um Portugal diferente sem espaço nem vocação para a violência nas ruas.

Seriam impensáveis, há 40 ou 50 anos, assistirmos a episódios lamentáveis como os que ultimamente alimentaram a mórbida curiosidade dos cidadãos, refiro-me, obviamente, aos que tiveram como protagonistas jovens raparigas ainda adolescentes incapazes de controlarem os seus ímpetos desaustinados. Seria inimaginável que, nesse tempo, viessem criminosos do país vizinho rebentar à bomba propriedades públicas em Portugal com o intuito de roubar grossas maquias de dinheiro. Como seria improvável a repetição dos desvios fraudulentos que empobrecem até à exaustão um país que, como Portugal, vive desde há largos anos em situação de penúria financeira.

Para quem, como eu, já deixou para trás largas dezenas de anos, estará ainda lembrado dos tempos em que se podia percorrer Lisboa e Porto de dia ou de noite, e bem assim qualquer outro ponto do País, sem receio de lhe acontecer algum percalço. Tempos em que as ruas e os caminhos eram de todos e não de apenas alguns que hoje se permitem fazer deles o seu campo de manobras marginais. Era assim o Portugal de antigamente, pese embora o regime ditatorial que se viveu durante quase meio século.

No presente, já todos nos habituámos a olhar por cima do ombro; já aprendemos a não sair de casa depois de uma certa hora; a olhar com desconfiança as caras desconhecidas que connosco se cruzam; e, inclusive, a não trazer connosco quaisquer objectos de valor. Entretanto, as cidades grandes tornaram-se selvas intransitáveis onde só se aventuram as feras esfaimadas, sedentas de violência.

Este não é o País que nos foi deixado em herança pelos nossos maiores. Este é o Portugal que, impantes de indiferença parola, ajudámos a construir; o Portugal que já não é mais o meu orgulho, mas a terra apocalíptica que, talvez por culpa nossa, legamos aos nossos filhos.

Inevitável vai ser o julgamento que mais tarde não deixará de ser feito a este período da história. Julgamento em que nós, os que nos temos como cidadãos
impolutos inevitavelmente seremos acusados dos pecados de desleixo e omissão.

A promessa de liberdade que a instauração da democracia prometia referia-se a algo que nos fez sonhar. Porém, pelo caminho que se seguiu o significado de “liberdade” desvirtuou-se transformando-se nesta coisa suja que é, hoje, o cenário em que os portugueses vão arrastando a sua desilusão.