27 de junho de 2013

O protagonismo

Luís Farinha


O protagonismo está na moda.
  
Ser importante aos olhos dos outros é hoje a preocupação maior de qualquer indivíduo, independentemente da sua real valia ou do lugar que ocupa na esfera em que se move. Mostrar influência satisfaz mais do que sentir-se amado.
  
Este é o homem (e a mulher) actual: pimpão, intolerante, superior. É o novo homem que a sociedade inventou, os valores que hoje se consagram são a vacuidade, a presunção, o faz-de-conta. Um homem altaneiro na aparência, mas por dentro árido e seco como uma seara em Agosto.
  
A sua fome de importância chega a ser demencial. Para a satisfazer, renuncia a tudo o que até há pouco era fundamental para a afirmação fosse de quem fosse. Era assim quando a estatura do homem se avaliava pela sua verticalidade. Ser recto no julgamento, confiável no carácter e honesto em todas as situações era, noutros tempos, os atributos maiores que distinguiam os seres verdadeiramente superiores. Ter a honra de ser honrado e cultivar a dignidade em todas as circunstâncias, constituía o património maior que um homem podia legar aos seus descendentes.

Porém, essa concepção tem vindo a desvanecer-se ao correr dos tempos. Já não é um princípio assente, uma condição primordial, passou de moda…
  
Hoje avalia-se o homem (e a mulher) por aquilo que parece e não pelo que realmente é, pelo que vale. A imagem de marca é um culto que passou a fazer parte da cosmética social. Invertidos os valores em que antes a sociedade se escorava, assiste-se actualmente à promoção da aparência, à exaltação do faz-de-conta.
  
Para serem aceites pela opinião pública as figuras e os figurões contratam quem lhes cuide da aparência exterior, mesmo que depois, no dia-a-dia, as suas acções desmintam a imagem que procuram fazer passar. O estilo trauliteiro substitui a seriedade, mais difícil de sustentar (o teatro político é disso palco privilegiado). A falta de inteligência é mascarada com uma postura arrogante, mais fácil de exibir. A fidelidade à palavra dada vai deixando de ter sentido. Recordo ainda quando para honrar um compromisso bastava um aperto de mão. Hoje, nem mil assinaturas reconhecidas pelo tabelião garantem seja o que for. Aliás, é inegável que, forma geral, se vai impondo e aceitando o conceito de que tudo tem um preço, até o respeito próprio. A justiça passou a ser apenas uma força de expressão vazia de sentido. A palavra, com o uso imponderado, acabou por transformar-se numa pedra de arremesso.
  
Enfim, paulatina mas seguramente, a sociedade tal como a conheci vem caindo em desuso.
  
São os efeitos da modernidade, hoje tão glorificada, dizem. Não concordo, de todo: são, antes, sinais premonitórios de um mundo em processo de mudança. Um mundo que não será mais o que conhecemos até aos finais do século XX. Os primeiros sinais já não deixam margem para dúvidas: o mundo actual aponta, inequivocamente, para uma sociedade composta de duas classes, os que têm tudo e os que nada têm, agora e nos tempos que estão para vir. Em essência, baseia-se no princípio de que para que os primeiros vivam na abundância insaciável, têm os outros que sobreviver num estado de penúria cada vez mais profunda, mais acentuada e falha de tudo, até do essencial. Só assim – e os exemplos já são bem visíveis – o poder financeiro pode crescer sem parança. Olhando as estruturas que sustentam a sociedade actual, fácil é concluir que, forma geral, todas elas estão a ser reformadas (e já vão funcionando) ao jeito de um mundo pensado para dois grandes grupos: o que trabalha no duro, sem regras e sem proveitos, enquanto o outro, sentado, vai contando sofregamente os milhões provenientes do esforço dos que produzem em troco de quase nada.

O protagonismo está na moda. A prova de que assim é decorre do facto, hoje tornado comum, de que ser ex-ministro (ou ex-membro dum governo) é que está a dar. Os exemplos são mais que muitos e estão à vista de todos, aqui, neste nosso Portugal pequenino.

18 de junho de 2013

Caridade versus solidariedade

Luís Farinha


Todos os dias colhemos exemplos de que entre caridade e solidariedade há uma enorme diferença. Pena é que a maioria de nós não se aperceba das diferenças que distinguem uma da outra.

A caridade serve, sobretudo, para calar a consciência de quem dá, mas avilta quem a recebe. Pelo contrário, ser solidário é viver de braços abertos para receber os aflitos. É como estender a mão a quem dela precisa na hora da desgraça. É sofrer com a dor dos seus irmãos e alegrar-se com a sua felicidade. Solidariedade é, para quem a oferece, um sentimento que enobrece e um bálsamo, para quem a recebe.

Por isso eu digo que, parecendo uma sinonímia, há uma diferença abismal que impõe reflexão.

No decorrer da minha já longa vida, senti algumas vezes a indiferença de alguns amigos e conhecidos em certos momentos menos bons que experimentei. Porém, não esquecerei jamais os que me aquietaram nos momentos de ansiedade e rejubilaram mais adiante com a minha felicidade.

Neste nosso Portugal que se afunda no abismo da desesperança, muitos há que atingiram já o patamar mais raso. Famílias inteiras sofrem hoje na carne os efeitos da desordem que lhes caiu no colo. O desânimo está instalado e, de acordo com os especialistas, não há grandes hipóteses de os portugueses da vulgarmente designada classe média voltarem a gozar a euforia económica que marcou o quotidiano das últimas duas décadas. Foi um período nascido de uma sucessão de erros cometidos ao longo de anos por governantes mal amanhados que confundiram a árvore com a floresta. Que se deixaram turvar com as patacas aparentemente inesgotáveis vindas da Europa, levando a que, por arrasto, os cidadãos acabassem por medir o seu dia-a-dia pelo mesmo diapasão.

O país está em frangalhos graças às acções destemperadas de um grupo de novos arquitectos políticos cujas teorias económicas não ponho em causa, embora reconheça que padecem duma enfermidade grave: são falhos de dimensão humana que lhes facilite a aplicação prática da sabedoria adquirida nos compêndios universitários. Resulta daí que a notória falta de experiência profissional (que as suas falhas denunciam) somente seja ultrapassada pela arrogância do poder discricionário que ostentam com ufania.

Voltemos porém ao parágrafo inicial…

Face à derrocada estrondosa da economia em Portugal e à incapacidade demonstrada pelos actuais governantes no sentido de encontrarem formas menos contundentes de a enfrentar, eis que – para surpresa dos mais cépticos – têm-se multiplicado os actos e acções de solidariedade em benefício dos que vêm sendo mais atingidos pelo desabamento. Homens e mulheres, jovens e idosos cônscios do seu lugar no mundo têm surpreendido tudo e todos com a sua abnegação. Acorrem com a sua ajuda – agrupados ou individualmente – minimizando com o seu humanismo os efeitos da sangria obstinada levada a cabo sobre os que menos têm.

Nestas horas de profunda adversidade tem havido inúmeros gestos de solidariedade, sendo inumeráveis os que têm sentido o apelo voluntário de dividir o pouco de que dispõem com aqueles que já nada possuem. São actos abnegados de amplo significado, credores por isso do mais profundo respeito. Marca indelével da chama que habita o coração dos portugueses não será vã esta demonstração de filantropia, estou certo. Em meio à tragédia que nos assola, tenho visto exemplos sem conta de caridade e de solidariedade. Sendo que a primeira provém normalmente de instituições que encaram o auxílio dispensado como o exercício espectável da sua natureza, a segunda destaca-se porque emana de pessoas singulares ou agrupadas para o efeito, gente que nada ou pouco tendo de seu não nega mesmo assim a sua solidariedade aos que têm ainda menos e que sofrem muito mais.

É uma lição com que a vida, por desgraça nossa, nos tem vindo a confrontar ultimamente.    

15 de junho de 2013

A selva à minha porta…

Luís Farinha

Os últimos tempos têm vindo a ser marcados por uma sucessão de acontecimentos, quaisquer deles capaz de adulterar a tranquilidade e a paz de espírito que o cidadão comum precisa para ir empurrando a vida para a frente.

Aliás, chega a ser difícil perceber onde vamos nós buscar reservas de energia depois de diariamente sermos submetidos à avalanche de notícias trazidas pela comunicação social. Notícias a que, obviamente, ainda temos de ir acrescentando os altos e baixos da nossa própria vida pessoal.

A verdade é que nós, os humanos, temos muito mais resistência anímica do que é suposto, à primeira vista. Queixamo-nos, lamentamo-nos, mas (sabe Deus como...) lá vamos andando em frente, através do mar revolto da vida. À espera não sei do quê.

É certo que, às vezes, alguns de nós, lá nos deixamos envolver mais do que a conta nos problemas que nos rodeiam e então perdemos de todo o controlo de nós mesmos. Mas, forma geral, passada a onda alterosa que nos submergiu durante algum tempo, aí estamos de novo, prontos a enfrentar os problemas que, afinal, já fazem parte deste mundo louco em que nos foi dado viver. Que mais nos resta, afinal?

Misturados com os próprios problemas pessoais, os últimos tempos têm-nos trazido, por acréscimo, uma série de conceitos que chegam e sobram para ensombrar os amanhãs que estão para vir. Um grupo de políticos de recente geração, impantes de soberana sabença, tem-nos vindo a impor um estilo de vida baseado na teoria de que os pobres têm de ficar cada vez mais pobres para que os ricos sejam cada vez mais ricos. A urgência da implantação de tal filosofia tem marcado o quotidiano dos portugueses a um ponto que toca já a raia da loucura. Sinal insofismável desse tresvario é a sucessão de notícias que diariamente dão conta da imparável precipitação de ocorrências alucinadas que vão por aí. Suicídios, homicídios aloucados, assaltos violentos visando os mais idosos, conflitos de vária ordem, crianças maltratadas, vulgarização dos crimes de colarinho branco e outras, muitas outras ocorrências inexplicáveis que apontam o dedo acusador à transformação brutal que vai sendo imposta aos cidadãos.       

O desemprego imparável, as promessas de tempos piores que estão para vir, a arrogância dos poderosos, a ausência de perspectivas, a fome, o caminho para o vazio, o desaparecimento das pequenas coisas que permitem cumprir o sonho. Sim, o sonho, porque sonhar é o que resta aos que pouco mais têm.   

Por falar em sonhos, fosse lá pelo que fosse, talvez porque a vida real se me vá tornando um fardo difícil de levar, a noite passada tive um sonho bonito que, durante o tempo que durou, me restituiu a paz de espírito. Foi um sonho tão bonito que, quando despertei, grande foi a minha frustração ao verificar que tudo não passara afinal da utopia trazida pelos anseios que se agitam nos recônditos do meu subconsciente.

Sonhei que vivia num mundo onde não havia guerras. Num mundo em que não existiam crianças com fome e crescidas no medo, submetidas à bestialidade. Sonhei que todos os homens eram iguais e que deixara de haver a impudicícia a separá-los. Sonhei, imaginem, que a palavra ‘poder’ fora erradicada e que, em seu lugar, os governos eram agora constituídos por homens sábios, de boa fé, de carácter.      

Acordei a sorrir, transbordante de felicidade!

Aos poucos, porém, enquanto ia tomando consciência de que tudo fora um sonho e de que o mundo real continuava a ser aquele em que eu sempre vivera, senti a decepção submergir-me, senti a raiva crescer e a náusea a aumentar.

Quis correr de volta ao meu sonho bonito, mas não encontrei o caminho para lá chegar.

Então, relutante, levantei-me, vesti-me e regressei à selva que me esperava lá fora.

14 de junho de 2013

Um caso do acaso…

Luís Farinha


   Vão 35... 40 anos?
   Por aí...
   Dessa época recordo o período confuso do 25 de Abril, que aconteceu um par de anos depois de a ter conhecido...
   Como e em que circunstâncias a vi pela primeira vez?
   Bom... um amigo perguntou-me se eu seria capaz de arranjar emprego – ‘um emprego mesmo modesto’ - para uma jovem amiga sua.
   Quis o acaso (o acaso tem destas coisas...) que a oportunidade surgisse três ou quatro dias depois. Um emprego numa sapataria, no Chiado, em Lisboa.
   Por indicação minha a jovem foi lá... e conseguiu o lugar.
   "Uma boa empregada!" -  dizia meses depois o meu amigo Felício, o seu novo patrão.
    Curiosamente, perdi-a de vista depois desse episódio fugaz... Pelo menos estive sem a ver durante mais de um ano.
  
   Um dia, tomava eu café, com um colega, no Foia, no Campo de Santana, em Lisboa, quando a jovem da mesa ao lado me cumprimentou com um aceno da cabeça...
   Correspondi, sem a reconhecer.
   Vendo a minha hesitação, lembrou-me então quem era: “eu sou…”
   E fez-se luz!
   Só que não percebi como é que uma empregada de balcão, estava alí, às quatro da tarde, sentada, calmamente, a tomar café! E foi essa a questão que lhe pus, prevendo já ouvir o relato dum eventual desentendimento laboral.
   Tinha deixado o emprego que eu lhe conseguira, explicou-me, para se dedicar a tempo inteiro à realização dum sonho: tirar o curso de enfermeira. A escola funcionava a dois passos, na Artur Ravara, localizada no Hospital dos Capuchos. Aproveitara um intervalo para vir ali tomar café…
   Em tom casual contou-me que vivia um período algo difícil. Tinha esgotado as reservas amealhadas que lhe permitiam manter-se a estudar, sem trabalhar. Segundo confessou, todo o dinheiro que havia conseguido guardar tinha chegado ao fim. Por isso, adiantou com evidente desgosto, tinha de pôr de lado o velho sonho e voltar a empregar-se.

   Por natureza impulsivo, só voltei a mim depois de me ter oferecido para a ajudar. Porém, ciente das armadilhas que a bondade esconde, desde logo achei por bem não deixar pairar a dúvida. E fi-lo – reconheci depois – de forma um tanto brusca: “Mas faço questão de frisar que não pretendo nada em troca”, adverti-a. “Você é uma jovem simpática mas confesso-lhe que, além do mais, não faz o meu género. É em nome da amizade que tenho ao Henrique (o nosso amigo comum) que a vou ajudar mais esta vez”. E rematei: “Faça de conta que encontrou uma velha tia que se dispôs a valer-lhe”.

   ... e ajudei-a até ao final do curso, três ou quatro meses depois. Tarefa que aliás terminou da melhor maneira com o desejado diploma de enfermeira.
  
   E foi assim que a história começou. Tantos anos passados posso garantir, hoje, que aquele meu gesto espontâneo não servira para acobertar outra intenção que não aquela que referi: quis ajudar alguém em manifesta dificuldade, a amiga dum amigo que eu estimava e de quem já não sei há largos anos. Mais do que as palavras que dela ouvia foi o seu olhar contristado que fez disparar o pouco que de bom terei dentro de mim. Como noutros momentos do meu percurso de vida, só depois me deu para reflectir acerca do episódio que acabara de viver. Só então me dei conta de que por mais que eu insistisse ou jurasse ninguém iria acreditar, daí em diante, na lisura da minha oferta àquela rapariga. Quem me conheça de longa data sabe bem que, em questões de sexo, com ou sem paixão, nunca recorri à compra de amor. Excepção óbvia no breve período da adolescência quando a natureza me começou a impor a satisfação das sensações que o corpo me exigia. Era um tempo em que os namoros se ficavam por um beijo furtivo ou uma carícia fugaz. Sem espaço, na maioria das vezes, para ir mais além.

   A sua primeira colocação, na nova profissão, ocorreu logo depois de terminar o curso. E a amizade entretanto estabelecida foi-se reduzindo a um ou outro breve encontro para – segundo dizia – dar-me notícia da sua evolução na carreira que eu a ajudara a construir. Entretanto, um acaso fortuito fez o que eu jamais previra. A amizade redundou em algo mais, numa situação que eu estava bem longe de prever e sobretudo de querer. Durou enquanto durou até que um dia cada um de nós partiu ao encontro de outros destinos, seguindo rumos diferentes.

   Foi um dos casos do acaso que a vida reserva a cada um de nós…

   Alguns anos depois, vi-a na televisão, num programa de que não recordo o nome. A minha protegida dera uma nova volta à sua vida, pondo de lado a profissão de enfermeira – a velha aspiração que eu ajudei a concretizar. Transformara-se numa empresária ligada à moda.
  
   E o seu nome continua a brilhar no néon duma conhecida boutique da cidade de Lisboa.

   Casou, venceu... criando renome nessa actividade.

   Nunca mais a vi…

4 de junho de 2013

Feia, suja e má

Luís Farinha


Para quê vir aqui armar ao pingarelho, fingindo o que não sou, tentando passar a ideia de que, sem a minha intervenção, o mundo acabará por soçobrar? De que me serviria dar-me ares de que, comigo, outros aprenderiam a conhecer aquilo que só eu fui (ou sou) capaz de decifrar? Que faço parte dos que ficarão na história por terem trazido ao mundo pilhas de sabedoria? Que interesse poderia ter o meu percurso de vida, para vir aqui brandir com petulância as experiências que acumulei, como se fossem singulares os amores que vivi, as pessoas que conheci, as proezas que realizei? A verdade é que nos meus muitos anos de vida nunca fui herói em actos relevantes, nunca encontrei motivos para me enfatuar. Limitei-me a ser um sujeito naturalmente pertinaz nos anseios e realizações que levei a cabo, sendo certo, no entanto, que feito o balanço, à distância de tantos anos decorridos só encontro agora mais motivos de contrição do que de ufania.

Pela ordem natural estarei na recta final duma vida que vai longa. Restam-me as lembranças guardadas nos recônditos da memória e uma constante reflexão sobre as pessoas e coisas que hoje fazem parte da minha história deixada para trás. Revivo muitos episódios que me foram gratos e outros que de bom grado melhor seria não terem acontecido. Revejo locais, rostos e figuras que pontuaram momentos imorredoiros do meu percurso de vida. E alguns, outros, que olhados à distância do tempo melhor seria não ter conhecido. Ouço ainda o eco de muitas palavras ditas e outras que me arrependo de ter calado. Vivi paixões correspondidas, mas tenho pena, hoje, de não poder recuar no tempo para pedir perdão de, em algumas delas, ter deixado crescer expectativas que não fui capaz de levar a bom termo. 

A vida ensinou-me muitas coisas importantes. Dela, estou certo, aprendi lições que contribuíram para a formação do ser humano que hoje sou. Só lamento, porém, que na recta final que agora vivo para nada sirva tanta experiência acumulada. Na corrida a caminho de um futuro que idealizei promitente esqueci-me de cultivar influências que aplanassem a longa estrada que tinha pela frente. Tarde, só agora me apercebo que devia ter parado para pensar, mas andava demasiado ocupado a trabalhar no duro, sem tempo para chamar a mim algumas das coisas boas que a sociedade mantinha em recato, guardadas para uns quantos escolhidos. Hoje, olho em redor quedando-me pasmado com as enormidades a que me é dado assistir, não reconhecendo o mundo em que me foi dado viver, o país de que sempre me orgulhei, a cidade onde nasci e vivi todas as fases desta minha vida cansada e as pessoas com quem me cruzava nos tempos em que ainda acreditava que a pulhice não passava de uma alusão retórica. Para meu desespero só tardiamente me apercebi de que por esta sociedade de faz de conta em que vivemos se pavoneia uma infinidade de celerados perversos disfarçados de “gente boa”. Eles andam por aí, dissimulados, espreitando oportunidades para lançar as unhas aduncas sobre os indefesos cidadãos. Nos negócios, nos corredores da política, no Estado e fora dele, nas ruas e às portas das nossas casas. É um mundo novo criado por legiões de homens sem honra, sem brio, vazios de dignidade. E é esse mundo que eu – com imensa pena – vou legar ao meu filho. Que ele um dia me consiga perdoar a leviandade de o ter chamado a esta vida que não pediu, feia, suja e má.