7 de março de 2011

As muitas etapas duma vida co(u)mprida


José Viana


As muitas etapas

duma vida co(u)mprida

“Se ainda sonho? Claro que sonho, embora sejam sonhos com data de validade. Quer dizer: na minha idade tenho a consciência clara de que os sonhos, quando os tenho, vêm com um prazo mais curto para serem realizados”

Luís Farinha

Entrevista realizada e publicada em Março de 1997


Luís Farinha - Devo saudar o actor, o autor, ou o artista plástico?

José Viana - Oh, meu amigo! Penso que o melhor será saudar o homem que está aqui à sua frente e por trás dessas designações. Um homem que se dedica a várias actividades de cariz artístico mas que ainda hoje, tantos anos passados, ainda pára de vez em quando para fazer a si próprio essa mesma pergunta.


L.F. - Convido-o a meter-se comigo na máquina do tempo para revisitarmos a época da sua adolescência. Você, que é um homem multi-facetado, se voltasse ao princípio de tudo que carreira escolhia, em definitivo?

J.V. - Sou um sortudo, sabe? E considero-me assim porque toda a vida fiz aquilo de que mais gosto. Sempre trabalhei no que me dá mais prazer. Mas... respondendo directamente à sua pergunta: faria as mesmas opções que fiz.


L.F. - Admite que há muita gente a exercer a carreira errada, claro. Médicos medíocres que teriam sido uns óptimos engenheiros; advogados assim-assim que dariam uns excelentes jornalistas; políticos que num palco estariam nas suas "sete quintas"... 

J.V. - Isso é uma coisa que me impressiona imenso, até porque passei por uma experiência que me deu a percepção clara do que será viver assim, na profissão errada, anos e anos a fio. Foi uma experiência terrível, mas que felizmente durou apenas um mês. Era fotogravador na casa Bertrand & Irmãos e aceitei um lugar na Sonoro Filmes, para trabalhar em publicidade. No entanto, no novo emprego acumulava essas funções com a de contabilista. Porém, como eu e os números temos uma inimizade visceral, chegava a chorar de desespero porque, por mais que fizesse, as somas das facturas saiam-me sempre erradas. Ao fim de um mês, já farto daquilo, disse ao patrão que me despedia porque não era capaz de somar a direito. Felizmente que, como o meu outro trabalho, na publicidade, o satisfazia plenamente, propôs-me que eu ficasse apenas nesta função.


L.F. - A partir daí...

J.V. - A partir daí passei a dar muito valor às pessoas que, para ganharem o pão, têm toda a vida que fazer uma coisa que detestam e para que não têm vocação.


"Vivi a minha vida, cometi erros, fiz coisas bem feitas, outras mal. Mas ficaria triste, muito triste, se as pessoas pensassem que, em qualquer situação, fui alguma vez motivado por intenção malévola"


L.F. - Zé Viana, não vamos iludir a verdade com rodriguinhos que não levam a parte nenhuma. Como a de toda a gente, todo o seu percurso foi amalgamado de muitos momentos felizes e de algumas tribulações. Acha que a vida lhe deve alguma coisa, ou considera as contas saldadas?

J.V. - Não me revejo nesse tipo de situação. Eu vivi a minha vida, cometi erros, fiz coisas bem feitas, outras mal... Hoje, com a minha idade, quando reflicto sobre o que ficou para trás fico contente à lembrança das coisas em que acertei, que fiz bem feitas, como fico aborrecido ao reconhecer que outras foram verdadeiras asneiradas. Entretanto, não deixo de considerar que as minhas acções, boas e más, foram sempre ditadas pelas circunstâncias. Agora, ficaria triste, muito triste se as pessoas pensassem que em qualquer situação fui alguma vez motivado por intenção malévola.


L.F. - O José Viana ainda sonha?   

J.V. - Claro que sonho! Embora sejam sonhos com data de validade. Quer dizer: na minha idade tenho a consciência clara de que os sonhos, quando os tenho, vêm com um prazo mais curto para serem realizados.


L.F. - Quando se perde a faculdade de sonhar, é porque a vida chegou ao fim...

J.V. - Esse é um conceito que está perfeitamente configurado no poema do Gedeão quando diz que sonhar é uma constante da vida.


L.F. - Recordo a primeira entrevista que lhe fiz, num camarim do Maria Vitória, já lá vão mais de 30 anos! Você era então um actor cheio de projectos para o futuro. Entretanto, a vida encarregou-se de introduzir algumas alterações nesses projectos mostrando-lhe novos caminhos, empurrando-o para novos destinos. Há um dez anos voltámos a conversar e nessa altura o Zé atravessava um período de algum desalento. Mais recentemente, aí por 92 ou 93, quando nos voltámos a encontrar para mais uma entrevista, já tinha voltado a retirar os pincéis da gaveta. E agora... que novidades há para contar sobre o José Viana? O que é que lhe consome o tempo neste período da vida?

J.V. - Actualmente estou pouco activo em quaisquer dos ramos a que me dedico. Faço um filme de vez em quando, como acontece agora...


L.F. - Mas vai pintando, claro!

J.V. - É verdade, mas se antes pintava dez horas por dia, agora só pinto dez horas por mês. Depois, esta mania de estar sempre a pôr em causa o que está estabelecido, de estar sempre a reformular os velhos clichés, transforma seja o que for num parto muito difícil...


L.F. - Então, se pinta dez horas por mês, como explica a frequência com que faz exposições dos seus trabalhos?

J.V. - ...mesmo assim é muita pintura!


L.F. - Ah é?

J.V. - Acredite que é!


L.F. - Tanto quanto sei, essas exposições têm tido sucesso.

J.V. - Ainda bem que é assim. Fico contente, até porque não consigo evitar de ter, como pintor, as reacções que habitualmente tenho como actor. Um actor gosta de agradar e, no caso da pintura, se ela agrada, eu fico igualmente feliz. Mas atenção! Isso não significa que eu esteja sempre satisfeito com o meu trabalho, ein? Quando acontece as pessoas gostarem de um quadro de que eu próprio não gostava... lá regressam de novo as minhas dúvidas! Lá volto eu a questionar os conceitos!


L.F. - Mas então, diga-me lá José Viana: o que é que o leva a questionar-se como artista?

J.V. - Ainda bem que agrado, tudo bem, mas acredite que eu não pinto para obter esse efeito. Eu pinto para ver se descubro até onde posso ir, o que posso mais oferecer ou propor na minha pintura. O problema é que nunca chego à resposta que procuro.


L.F. - Segundo Miguel Ângelo: a pintura é sempre um começo

J.V. - ... e é!


L.F. - Como há pouco eu dizia, a vida vai-se encarregando de modificar a nossa perspectiva acerca da vida, ao mesmo tempo que nós próprios nos vamos modificando também. No seu caso, quais foram as mudanças mais significativas que o tempo produziu em si, como homem, ao longo dos últimos 30 anos?

J.V. - Vou dispensando muita atenção aos acontecimentos e às mudanças que têm vindo a operar-se na sociedade. No entanto, 30 anos, quando já tenho 74... representa só um breve espaço de tempo. Por isso, recapitulando a minha vida adulta dir-lhe-ei que os factos que constituem hoje o meu património referencial foram a Guerra de Espanha, depois a 2.ª Grande Guerra, o advento do nazismo e, só mais tarde, o 25 de Abril.


L.F. - Pessoalmente, que marcas lhe deixou a vida?

J.V. - A penúria... com a separação dos meus pais quando eu tinha apenas três anos. A partida do meu pai para África em busca de uma vida melhor, destino de onde não regressou porque por lá morreu. As dificuldades económicas em que a minha mãe ficou atolada. O meu despertar para a política, através das conversas que ouvia aos estudantes na pensão que, entretanto, a minha mãe montara, como recurso para a nossa sobrevivência. Estes são na verdade os factos que me marcaram desde a primeira infância.


L.F. - Voltando ao Teatro... tem saudades do palco, hoje que vive praticamente afastado? Ou a pintura passou a ocupar um lugar tão importante na sua vida ao ponto de o fazer esquecer esse grande amor?

J.V. - Vou fazendo o gosto ao dedo quando de vez em quando aparece um trabalho que vale a pena. Ainda há muito pouco tempo fui com a minha mulher à Holanda fazer um espectáculo para os emigrantes. Confesso, no entanto, que já não tenho é muita pachorra para o trabalho repetitivo do Teatro. Duas sessões todas as noites, matinés aos domingos... não, para isso é que já não estou muito virado.


José Maria Viana Dionísio de seu nome completo nasceu em Lisboa em 6 de Dezembro de 1922 e faleceu, vítima de acidente de viação, em 8 de Janeiro de 2003, tinha 80 anos. 
José Viana começou por desenhar e depois por pintar. Chegou a ser cenógrafo, encenador, autor, cantor, compositor, mas foi como actor que se tornou mais conhecido, sobretudo no teatro de revista e, posteriormente, na televisão

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