Luís Farinha
Sobrevoar Lisboa,
de noite, no regresso de mais uma viagem de trabalho ou de prazer, é um gozo
que se renova em cada vez que acontece. Pelo menos é o que eu costumo sentir. A
última foi em 20 de Maio passado, no regresso de Lyon (França). Chovia quando
embarquei, lá, e continuava a chover quando vi aproximarem-se as luzes da
cidade de Lisboa. Num bom voo, como quase sempre, tentei cobrir aquele espaço
de duas horas assistindo aos esforços dos assistentes de bordo (antigos comissários) a tentarem vender alguns
artigos de discutível interesse e os jogos da raspadinha que, para minha
surpresa, têm agora tanta saída lá em cima, entre as nuvens, como cá em baixo,
nos cafés cá do meu bairro.
Aterragem
perfeita apesar da chuva persistente. Duas assistentes portuguesas (antigas hospedeiras de bordo), na cabine junto à escada da saída, na cauda
do avião, acompanhavam a operação de desembarque. Uma delas, armada de
microfone, apresentava os habituais agradecimentos da companhia transportadora,
à mistura com os avisos da praxe na hora do adeus. E foi aí que a coisa
aconteceu. “Continua a chover, por favor
tenham cuidado com os degraus, apõem-se nos corrimões”. Surpreendidas,
ficaram a olhar o senhor que, na passagem, lhes recomendou a meia voz:
“meninas, não se diz corrimões mas
sim corrimãos” e iniciei a descida sem olhar para trás.
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Não sendo um 'crítico' no sentido em
que, nos media, isso é entendido, não resisto à trazer aqui dois reparos que me
causam uma espécie de urticária. Por isso aí vai...
Os 'Entões' estão na
moda?
Ouve-se todos os
dias nas rádios e nos vários canais de televisão. Nestes, a moda pegou para
valer. De microfone na mão, não há repórter que se preze que não avie meia
dúzia de sonoros 'entões' durante uma intervenção de um ou dois minutos. É um
regalo! Quase sempre a despropósito, o 'entões' saltitam de frase em frase salpicando
a verborreia para que a notícia, o acontecimento, tenha mais emoção. Para que o
público caia em êxtase perante tanto dinamismo jornalístico.
Exemplos
ficcionados:
"É esperada hoje, no Porto,
a chegada da rainha da Holanda afim de acompanhar a inauguração do 'Porto,
Capital da Cultura'. Espera-se então que a rainha chegue por volta das 17
horas".
Ou:
Hoje, às quatro e meia da tarde,
um grave acidente rodoviário pôs termo à vida de dois jovens de 23 e 29 anos.
Uma viatura de alta cilindrada despistou-se então
na recta do Dafundo, na Marginal, indo embater, de frente, numa camioneta de
carga que seguia na direcção de Algés. Do brutal acidente resultou então a morte dos dois jovens que
seguiam no BMW havendo ainda que lamentar ferimentos graves no condutor da
camioneta. Quando os bombeiros chegaram ao local, poucos minutos após o
acidente, já nada puderam fazer em favor dos dois jovens, limitando-se então a transportar para o hospital o
motorista ferido.
Ou:
"No Martim Moniz, em Lisboa,
desabou um prédio que há muito ameaçava ruína.
Felizmente não se registaram então vitimas entre os moradores.
Foi ontem que a ocorrência teve então lugar numa das zonas mais
tradicionais da Capital".
Além de
inaceitáveis por serem utilizados fora de contexto, estes "entões..."
entram na lista daqueles lugares-comuns que os mestres designam por "bengalas"
- expressões utilizadas apenas com o intuito de estabelecer a ligação 'começo,
meio e fim' das frases que procuram a todo o custo adicionar emoção ao
acontecimento que está a decorrer.
É feio,
inestético e confirma apenas a pobreza de recursos linguísticos do
noticiarista.
Embora muito
menos frequente, o 'então' despropositado é já usado também por um ou dois
'pivots' televisivos. Daqui a teoria de se ter tornado moda a que alguns
profissionais não conseguiram resistir. A confirmar-se essa eventualidade,
torna-se ainda mais grave o que já por si me parece lamentável.
Modismos (1)
Ainda no âmbito da comunicação social
falada houve tempos em que se tornou moda acrescentar a consoante
"s" aos verbos terminados em "r". Assim, ouvia-se
pronunciar frequentemente: "morrer´s" em vez de morrer;
"viver´s" em vez de viver; "fazer´s" em vez de fazer;
"ir´s" em vez de ir; "acabar´s" em vez de acabar;
"sorrir's" em vez de sorrir; "escapar's" em vez de escapar;
"escrever's" em vez de escrever; "falar´s" em vez de
falar... Na prática, esta moda proporcionava frases com imensa piada, como:
"Fique para ver's, é já a seguir's".
A primeira pessoa a quem ouvi usar esta
preciosidade, um novel apresentador que eu nunca vira antes, dava-se ares de
grande vedeta. Profusa gesticulação, transbordante desembaraço, verbosidade
fluida e uma forma estranha de a pronunciar. A incontida presunção de que dava
mostras não demorou a arregimentar um sem número de seguidores. Rapidamente,
aquele falar estranho transformou-se em moda irresistível, principalmente entre
os recém-chegados à comunicação social falada. Hoje, muitos anos passados, a
experiência acabaria por levar a melhor. Ele aí continua, na televisão, agora
contido mas sempre fluente na palavra fácil, escorreita e despretensiosa.
Um apresentador aceitável.
Infelizmente, registo a
continuidade desse modismo, que acabou por passar à história, na figura de um
jornalista-pivot num dos canais generalistas. E sinto pena que a sua sobriedade profissional não se
estenda ao hábito malsonante dos 'esses' a terminarem os verbos acabados em 'erre'.
A menos que tal anormalidade se deva a um defeito contraído na estrutura
dentária, na língua ou no aparelho fonador. Se tal for o caso aqui deixo as
minhas desculpas, consciente de que no melhor
pano cai a nódoa.
Nota final (2)
Creio que vale a pena explicar por que
decidi trazer aqui estes dois reparos.
É incontestável que o mundo está em constante
mudança, porém nem sempre no bom sentido. Será por isso que sinto uma
confessada relutância em aceitar o que se confunda com o mau gosto. A falta de
brio profissional é, igualmente, um dos pecados que sempre me causaram
arrepios, evitando por isso o contágio degradante que tal prática implica. Como
jornalista de longo curso, vi - e continuo a observar - muitos sinais de
degradação de uma profissão que em tempos idos criou grandes figuras mercê do
zelo cuidado do seu desempenho.