27 de março de 2011

Quero de volta o meu sonho!

Luís Farinha


Os últimos tempos têm sido marcados por uma sucessão de situações e acontecimentos, quaisquer deles capaz de tirar a tranquilidade e a paz de espírito que o cidadão comum precisa para ir empurrando a vida para a frente. Aliás, chega a ser difícil perceber onde vamos nós buscar reservas de energia depois de diariamente sermos submetidos à avalanche de notícias dantescas trazidas pela comunicação social. Notícias a que, obviamente, ainda temos de ir acrescentando os reveses da nossa própria vida pessoal.

A verdade é que nós, os humanos, temos muito mais resistência anímica do que é suposto, à primeira vista. Queixamo-nos, lamentamo-nos, mas (sabe Deus como...) lá vamos andando em frente, através do mar revolto em que, nos últimos tempos, se transformou o dia-a-dia.

É certo que, às vezes, alguns de nós, lá se deixam envolver mais do que a conta nos problemas que os rodeiam e então perdem de todo o controlo de si mesmos. Mas, forma geral, passada a onda alterosa que os submergiu durante algum tempo, aí os temos de novo, prontos a enfrentar os problemas que, afinal, já fazem parte deste mundo aloucado em que nos foi dado viver. Que mais lhes resta, afinal?

Misturados com os próprios problemas pessoais, os últimos tempos têm-nos trazido por acréscimo uma série de acontecimentos que chegam e sobram para ensombrar a rotina do nosso dia-a-dia. Enumerá-los... para quê, se todos nós os conhecemos de sobra?

Fosse lá pelo que fosse, talvez porque a vida real se me vai tornando um fardo difícil de levar, a noite passada tive um sonho bonito que, durante o tempo que durou, me consentiu um sono tranquilo. Foi um sonho tão lindo que, quando despertei, grande foi a minha frustração ao verificar que tudo não passara afinal de uma utopia trazida pelos anseios que se agitam nos recônditos do meu subconsciente.

Sonhei que vivia num mundo onde não havia guerras. Num mundo em que não existiam crianças com fome e crescidas no medo, submetidas à bestialidade. Sonhei que todos os homens eram iguais e que deixara de haver a impudicícia a separá-los. Sonhei, imaginem, que a palavra PODER fora reformada e que o seu exercício era agora garantido por homens sábios, de boa fé.  

Acordei a sorrir, transbordante de felicidade!

Aos poucos, porém, enquanto ia tomando consciência de que tudo fora um sonho e de que o mundo real continuava a ser aquele em que eu sempre vivera, senti a decepção submergir-me, senti a raiva crescer e a náusea a aumentar. Quis correr de volta ao meu sonho bonito, mas não encontrei o caminho para lá chegar.

Então, relutante, levantei-me, vesti-me e regressei à selva que me esperava lá fora.

23 de março de 2011

A "Cebola" da minha infância

Luís Farinha


Tantos anos já passaram e ainda hoje não sei donde lhe veio a alcunha. Só sei que entre a criançada do bairro lisboeta onde vivíamos ela era conhecida por "Cebola". E Cebola ficou até a perder de vista atingida que foi a idade adulta.
A Cebola era uma miúda que, nas brincadeiras de rua, pedia meças a quaisquer dos rapazes. Corria ao lado dos melhores, trepava às árvores, jogava à bola como qualquer "craque" e era danada p'ra porrada quando tocava a tirar a limpo quem tinha razão ou quando as coisas não lhe corriam a jeito. Neste aspecto, mal ia a coisa quando ela tirava os seus óculos de grossas lentes e os passava para as mãos dum qualquer companheiro. Não lutava de mãos abertas… era o que faltava! Fechava os punhos e lá vai disto! E quando a refrega era mais tesa, até nada lhe custava servir pontapés certeiros.

E assim fomos crescendo. Veio a adolescência e foi por essa altura que a Cebola se foi entregando a outros passatempos. Em companhia da Rita, uma rapariga mais ou menos da sua idade, começou a manifestar gostos menos arrapazados. Criou reputação de "namoradeira". Curiosamente, porém, as suas preferências nesse campo não pendiam para os putos com quem tinha crescido. O seu fraco eram as fardas fossem elas do que fossem: magalas, marujos, carteiros (nesse tempo ainda fardados), polícias e assim por diante. Passava horas e horas, pasmada, em frente do portão de armas dos quartéis da tropa e dos bombeiros, ambos bem perto um do outro, lá no nosso bairro.

Depois veio aquela idade em que os grupos jovens se vão dispersando, cada um atrás do seu próprio destino. E a "Cebola" (Adelaide, de seu nome) não foi excepção. Depois da morte do avô Sebastião, com quem vivia, desapareceu do bairro. Havia quem dissesse tê-la encontrado por maus caminhos, mas não sei quanta verdade havia nessas informações esparsas.

Correram os anos, muitos anos, e a Cebola passou a ser apenas uma ténue lembrança dos tempos da minha infância.

Há uma vintena de anos desloquei-me ao Porto atrás duma reportagem cujos contornos já não recordo bem. Efectuado o serviço e não me apetecendo fazer de noite a viagem de regresso à Capital, decidi ir jantar à Abadia, na Travessa de Passos Manuel. Porque estava sozinho e para não morrer de pasmo escolhi uma mesa estrategicamente situada de modo a conseguir uma visão alargada da ampla sala. A certa altura, descendo a escadaria de acesso, um casal chamou-me a atenção. Ele, de cabeleira toda branca, cuidado no vestir e exibindo um porte de alguma distinção; ela, de cabelos louros, pintados, trajada com elegância e de óculos de grossas lentes. Faziam um casal agradável à vista. Como quem se sente em terreno conhecido dirigiram-se directamente a uma mesa não muito longe da minha. Quando o empregado se acercou cumprimentou-os ao jeito de quem sabe bem com quem está. "Senhor doutor, como está?" Senhora Dona Adelaide, muito boa noite".

Olhei com mais atenção, provavelmente movido pela maneira afável do atendimento.

De resto, havia na senhora algo que me chamava a atenção. Seria o porte elegante? A simpatia que irradiava? Os seus óculos tipo fundo de garrafa?

De repente, dos recônditos da memória surgiu-me uma outra Adelaide, a Cebola da minha infância, a maria-rapaz que mais tarde descobrira em si um estranho arrebatamento pelos homens fardados. A pouco e pouco, ao mesmo tempo que ia descobrindo mais afinidades, as dúvidas transformaram-se em certezas e acabei por concluir que reencontrara finalmente a amiga que, entretanto desaparecera numa qualquer esquina da vida.

E por que não confessar que gostei imenso daquele reencontro depois de meio século de separação?

Acabei o jantar, subi a escada a caminho do hotel e, já tarde, quando finalmente adormeci, acreditem que me sentia feliz...

21 de março de 2011

A descrédito da classe política

Luís Farinha

Embora com alguma relutância, somos obrigados a reconhecer que, forma geral, a classe política não beneficia de uma imagem muito favorável junto do chamado povo da Nação.

Ouvindo as conversas de café, o “bate-boca” dos encontros fortuitos do quotidiano, são vulgares as expressões: “eles só se preocupam com a vida deles”; “eles querem é ‘tacho”; "eles prometem mas nunca cumprem...". No caso, “eles” são os políticos. Há até quem pense que a actuação da classe política pouco mudou com a revolução de Abril, mantendo-se os mesmos vícios, a mesma filosofia... mas de sinal contrário. Hoje, em vez de não darem cavaco dos seus actos, como faziam antigamente, demonstram uma aparente abertura à opinião pública, cultivando o “falar sem dizer nada”, em que há verdadeiros especialistas na arte de contar histórias para jornalista ouvir.

Mas... ensina a sabedoria popular que... “Prometer não é dar, mas aos tolos enganar”. E o povo dá sinais evidentes que já começa a estar farto de ser tido pelo tolo a quem tudo é prometido mas a quem nada é dado.
Daí, talvez, a tendência para acreditar cada vez menos nas promessas que nos fazem nos períodos eleitorais; daí a inclinação para fazer ouvidos moucos às palavras optimistas que os políticos espalham a rodos sempre que têm a imprensa por perto.

Talvez um pouco tarde, mas ainda a tempo, o povo parece ter aprendido finalmente o significado da palavra... “demagogia”. E, queiramos ou não, a verdade é que a maior parte daquilo que os políticos despejam em catadupas, não passa disso mesmo, de palavras ocas.

Afinal, quantas promessas têm sido feitas... sem que haja a mínima intenção de as cumprir? Isso acontece normalmente quando em foco estão problemas ligados à saúde, à segurança social, à educação, à confiança na Justiça, ao nivelamento do padrão de vida pelo modelo europeu, à segurança das pessoas e haveres, os incêndios do Verão, o Código Laboral... Porque a verdade é que o que dá votos não são a Saúde, a segurança social, a subida significativa das pensões, a Educação, o melhor nível de vida... coisas que não enchem o olho. O que dá votos é a obra feita que dá nas vistas, como as pontes, as estradas, os TGV’s, os novos aeroportos, as Expo’s 98, os Euros 2004... e assim por diante! A “obra” é feita, os políticos põem-se em bicos dos pés com discursos inflamados... e o povo fica na mesma: com reformas de miséria, com a Saúde de rastos, com uma Educação manca, com uma Cultura de faz-de-conta, com a Justiça por reformar e um nível de vida a cair aos pedaços, próprio do 3.º mundo. Daí, talvez, a desconfiança que os cidadãos manifestam em relação à classe política, desconfiança que se vai tornando cada vez mais óbvia, com a crescente abstenção às urnas de voto, de eleição para eleição. Não será isso uma clara manifestação do cepticismo que os cidadãos sentem em relação aos políticos que os governam? Se isso não é sinal evidente de descrença, então será o quê?

É fácil perceber que mudar a estrutura social de um país não é tarefa fácil. Não se transformam de “pé para a mão” muitos anos de baixa qualidade de vida numa sociedade económica e socialmente equilibrada. Com boa vontade podemos até acreditar que alguns dos políticos que têm passado pelas cadeiras do poder têm-se realmente esforçado para dar aos portugueses um nível de vida à altura do resto da Europa. Só que nesses casos o insucesso do eventual empenho deixa à mostra uma notória falta de talento para levar a bom termo as suas boas intenções. Na verdade, algum motivo leva a que 35 anos depois de Abril continuemos a ser o país mais pobre do velho continente.

Cogitando sobre esta matéria, apenas conseguimos chegar a uma conclusão: os portugueses não são um povo igual aos outros povos. Contudo, se esta é uma ilação negativista, se tal não for a razão que leva a não conseguimos sair da “cepa torta”, teremos de aceitar uma mais dura realidade: é real e incontestável a inaptidão dos senhores que têm passado pelas cadeiras do poder para a consecução do objectivo que se propuseram, a governação de Portugal.

Estas são conclusões que parecem mostrar um certo derrotismo. Mas por favor expliquem-nos em que é que Portugal como Nação é inferior às outras nações. O que é que essas nações têm a mais do que a nossa? Pensemos na Holanda, com os seus 5.444 Km2; na Dinamarca, com 42.192 Km2; na Bélgica, com 30.507 Km2; na Suiça, com 41.300 Km2; no Luxemburgo, com 2586 Km2; na República da Irlanda, com 70.280 Km2; e perguntemo-nos a que se deve a prosperidade destas nações, comparando-as aos 88.419 Km2 de Portugal, com um dos seus lados banhado pelo Atlântico, com um Sol radioso e uma luminosidade exaltada pelos que nos visitam. Não esquecendo o facto importante de que alguns dos países aqui referidos como comparação, terem sido ocupados e esventrados pelas hordas nazis dum tal de Adolfo, ou quase todas não possuírem condições naturais nem de longe comparáveis às de Portugal.

Perante isto, como se poderá explica a pobreza de que Portugal padece, como se de um destino irrevogável se tratasse?

Este texto foi escrito e publicado em 14 de Maio de 2004. Tendo em conta a sua actualidade achei por bem dá-lo de novo à estampa, sem qualquer alteração, quase sete anos depois, em 17 de Dezembro de 2010, no Diário de Notícias, tentando mostrar que em Portugal nada muda a não ser para pior.                                                                                                  

Confissões de um “homem-estátua...”

“GOSTO DE SER E VIVER DIFERENTE!”

Luís Farinha
(Reportagem e publicação em 04.Dez.1994)

   O que fará alguém optar pela estranha profissão de “homem-estátua”?
   Essa foi a pergunta que me fiz quando o vi, da primeira vez, em cima de um pequeno estrado, em plena Rua Augusta, em Lisboa.
   Lembro-me que fiquei ali, a olhar, durante largos minutos, preso não só da perfeição da sua postura, mas também a conjecturar sobre o que pode levar um jovem a escolher um modo tão pouco comum de ganhar a vida. 
   E, como sempre sucede quando me confronto com o insólito, logo comecei a sentir uma vontade danada de o entrevistar, de lhe perguntar coisas, de ficar a saber tudo a seu respeito.
   No dia seguinte voltei lá, à Baixa lisboeta, para conseguir comunicar com ele e pedir-lhe a entrevista. Mas não o vi, nem dessa, nem de outras vezes que tentei encontrá-lo.
   Nómada é a vida de um artista de rua. Imprevisíveis são os seus passos, os seus amanhãs, o seu futuro.
   E os meses passaram...
   Um dia destes, um pressentimento começou a martelar-me a cabeça. Sem saber porquê, alguma coisa me avisava de que ele, o “homem-estátua”, estava lá, em cima do seu estrado, parado no tempo, à minha espera.
   Fui... e ele lá estava realmente.
   A conversa que eu tanto desejava, tivemo-la, uns dias depois, num pequeno café de Paço de Arcos, perto da casa onde vive o António - o “homem-estátua” - que meio mundo conhece.

“Em Barcelona assisti a alguns espectáculos
de indivíduos a imitarem robots. E então pensei:
se um robot perdesse as pilhas, como é que ficava?
E então nasceu o homem-estátua”

   Sem pinturas, vestido como qualquer um de nós, António é um jovem comum. Bom conversador, inteligente, dissertando com inteiro à vontade e, sobretudo, com uma já larga experiência de vida, o que me contou aí fica a confirmar que a minha expectativa não crescera em vão...
   “Sou natural dos Pisões, Pataias, uma aldeia situada entre a Nazaré e a Marinha Grande. Vivi a infância num ambiente rural, numa família modesta que labutava no campo. Para fazer o liceu e chegar à Universidade tive sempre que trabalhar, porque embora os meus pais sempre procurassem apoiar-me, o orçamento familiar não dava para tanto”.
   Na Universidade de Coimbra, António Gomes dos Santos decidiu-se primeiro pela Matemática e depois pela Engenharia Geográfica, optando finalmente pela Geologia. Faltam-lhe apenas três cadeiras para obter a licenciatura que, segundo diz: "hei-de acabar um dia destes...", e ri-se, ante essa perspectiva.

   “Estava em Geologia e trabalhava, para me manter, nos Hospitais da Universidade de Coimbra. Tinha um cargo de alguma responsabilidade na secção de transportes, lugar que dava bastante trabalho embora ganhasse muito mal. Vivia sob uma forte tensão, acrescida pelo tempo que tinha que dedicar ao estudo, o que veio a provocar-me uma ‘neurodermite’ que me causou a queda total do cabelo. Então, porque o problema persistia apesar dos tratamentos que seguia, os médicos aconselharam-me a parar toda a actividade durante uns tempos.”

   Na altura, António tinha uma namorada que estudava Belas Artes em Perpignan, França. E foi para lá que ele partiu, fazendo uns biscates clandestinos para ir vivendo. Entretanto dedicou-se à prática do Hata Yoga.      
   Um dia, já um pouco recuperado, António decide regressar para completar o que tinha deixado por acabar: os estudos na Universidade. Porém, o destino tinha já feito planos diferentes a seu respeito...

   “Em Barcelona assisti a alguns espectáculos de rua com uns indivíduos a imitarem ‘robots’. E então pensei: se um ‘robot’ perdesse as pilhas ou as gastasse de repente, como é que ficava?”
   E ali, em plena Ramblas, nasceu o “homem-estátua”! Corria o ano de 1986.
   “Tudo  muito  rudimentar,  tanto  em  roupas  como  em  pinturas. Contudo, a 
verdade é que as pessoas paravam e ficavam a olhar para mim! E comecei a ganhar muito dinheiro. Daí ter ficado preso àquele local para todo o sempre. A tal ponto que todos anos volto lá, numa espécie de ritual a que faço questão de não faltar. Sabe, trata-se de um local que mantém uma particularidade que se vai perdendo por essa Europa: há uma total liberdade para o trabalho dos artistas de rua. Qualquer um, desde que não incomode quem passa, pode fazer o seu trabalho sem necessitar de autorização da câmara ou outra qualquer. A própria polícia faz a segurança velando e zelando para que não nos incomodem a nós. É exactamente o contrário do que se passa em Portugal, onde ainda se confunde o artista de rua com o marginal”. 

“Há seis anos bati o recorde mundial
da imobilidade, entrando para o
Guinness Book depois de 15 horas, 
dois minutos e 55 segundos sem me mexer.
Foi uma experiência única!”

   O desejo de ser e viver diferente das outras pessoas não acontece assim, de um dia para o outro, por qualquer razão furtuita. Normalmente, ele resulta de uma tendência que se pode entender como congénita. É algo que vive latente no indivíduo, o qual consegue algumas vezes, não muitas, sobrepor-se às convenções do seu meio-ambiente, levando por diante os apelos das sua natureza; outras, quase sempre, recalcando em si próprio atitudes que a sociedade docilizada reprova liminarmente, como inconvenientes.

   “As três mudanças na Universidade são, desde logo, um sinal evidente de que em mim germinava um desajustamento nem sempre inteiramente assumido. Inclusive, estive para seguir a carreira militar, mas também nisso dei um desgosto ao meu pai quando nem sequer o serviço obrigatório fiz. Aliás, desde muito novo que sempre procurei furtar-me ao convencional. Fui sucessivamente, resineiro, controlador de tráfego, cozinheiro... até no Hospital de Coimbra, onde trabalhei, a minha maneira de vestir não tinha nada a ver com o ambiente que ali se vivia. Resumindo: gosto muito de ser e viver diferente!”

   O “homem-estátua” já percorreu muita estrada. Na Europa Comunitária só lhe falta conhecer os países nórdicos. Já trabalhou também em várias cidades dos Estados Unidos e na Austrália, cumprindo contratos comerciais. Nestes dois países nunca teve ensejo de trabalhar na rua, o tipo de actuação de que mais gosta. Espera consegui-lo numa próxima vez. Por isso, cada "volta" à Europa demora-lhe cerca de quatro meses a completar. Ao continente americano e à Austrália vai, cumpre o contrato e volta. Quinze dias é o máximo que demora.

   “A rua é o meu local de trabalho predilecto, mas sou muitas vezes chamado para levar uma nota insólita a stands de exposições, como na FIL, por exemplo, e a montras de estabelecimentos. Curiosamente, a primeira vez que trabalhei numa montra foi ainda nos Grandes Armazens do Chiado, que infelizmente desapareceram no incêndio. Foi no Natal de 87, durante um mês inteiro.”

   Na sua carreira de “homem-estátua”, que já dura há longos anos, muitas coisas aconteceram, umas gratificantes, outras cuja lembrança não é muito feliz. É natural que assim seja, pois uma profissão tão singular como a sua parece constituir um desafio aos preconceitos renovado em cada dia. De tudo quanto lhe aconteceu, porém, António destaca um acontecimento que jamais será esquecido, por si e pelo mundo.

   “Foi uma experiência única! Há seis anos, na entrada do Centro Comercial das Amoreiras bati o recorde mundial da imobilidade, entrando para o Guinness Book depois de 15 horas, 2 minutos e 55 segundos sem me mexer. Quando toda a gente fazia previsões sobre qual seria o resultado de tudo aquilo, conjecturando sobre o estado em que eu ficaria, e supondo que dalí eu seguiria para o hospital, opinião de que compartilhava a própria equipa médica que sempre me acompanhou, eu entrei na ambulância, fizeram-me umas massagens... e em seguida fui beber uns copos com eles e com os membros do Guinness. As dores foram muitas, perdi uns quilitos, mas até hoje o recorde mentém-se... e algumas das consequências também: ainda hoje há quem me contacte oferecendo-me contratos por causa do Guinness Book.”

   Porém, como eu disse, nem só de boas recordações como esta se faz a história do “homem-estátua” português. Pelo caminho ficaram episódios menos felizes que ele recorda com alguma mágoa.

   “As más recordações têm tido sempre a ver com a polícia. Por exemplo: estava na Rua Augusta, aqui em Lisboa, as pessoas à minha volta a apreciarem o meu trabalho e a polícia, sem dizer uma palavra, chegou ao pé de mim, desliga a música, e em seguida, tratando-me como um ladrão ou pior ainda, meteram-me num carro, à força, e levaram-me para a esquadra. Embora com o meu trabalho esteja a fazer a divulgação daquela zona, actualmente sou obrigado a pagar uma licença anual à câmara, licença que me permite actuar, embora obrigatoriamente só naquela rua e naquele mesmo local, sem alternativa. No entanto, mesmo com essa licença, não é raro ainda hoje a polícia dirigir-se-me com modos bastante arrogantes. Em qualquer outro país isto nunca me aconteceu.”

“Fico alí a observar, 
como se não estivesse lá.
Depois chego a casa e escrevo sobre tudo o que vi, 
até altas horas...”

   Uma das questões que sempre me intrigaram no trabalho do “homem-estátua” é se a sua imobilidade se deve a uma invulgar capacidade de abstracção ou de concentração. É que, seja lá pelo que for, tem que resultar de um esforço de vontade que não está ao alcance de qualquer um. Imaginemo-nos completamente imóveis durante 10 ou 15 minutos, e mesmo sem concretizar o intento logo surgem as comichões, as piscadelas, a tosse... ou a vontade irreprimível de desatar a correr para qualquer lado.

   “É, sobretudo, um exercício de concentração. Para a conseguir, pratiquei Hata Yoga assiduamente, durante anos, numa versão dirigida não à meditação mas à concentração. Actualmente adoptei o Kum-nye, que são exercícios físicos retirados do Yoga tradicional indiano e chinês por um ex-membro dos 'marines' americanos, uma prática que proporciona uma concentração máxima sem abstracção.”

   Seja como for, é indubitável que um espectáculo constituído por duas horas de completa imobilidade não pode deixar de causar um desgaste físico apreciável.

   “Basta referir-lhe que a nível comercial e ganhe eu o que ganhar (e às vezes não tão pouco como isso...) nunca aceito um contrato que implique mais de três horas diárias de imobilidade, num máximo de cinco dias seguidos. Nos espectáculos de rua, para não sentir grandes problemas físicos, faço um máximo de quatro apresentações por semana, de duas horas cada. Quando por razões especiais, como acontece com as feiras e exposições, em que trabalho cinco dias seguidos com apresentações de três horas diárias, obrigo-me depois a estar em completo descanso duas semanas seguidas. Se o não fizer, as varizes atacam logo.”    

   Outra pergunta que me faço sempre que vejo o “homem-estátua” em actuação é por onde andará o seu pensamento durante as duas horas em que fica ali, alheio ao mundo que corre à sua volta.

   “Penso em tudo como se estivesse noutra situação qualquer. Mas é como se visse as coisas através de um micro ou de um telescópio. Tanto penso nas coisas em grosso modo, como me detenho sobre pormenores ínfimos que noutras circunstâncias não me ocorreriam. 'Porque é que aquela senhora põe os pés daquele jeito. Porque é que aquele senhor se veste daquela forma', enfim... coisas assim! Fico alí a observar, como se não estivesse lá. Depois chego a casa e escrevo sobre o que vi, até altas horas.”

   E que mundo é que ele vê do alto do seu estrado, enquanto a imobilidade o obriga a estar ali, parado, a olhar e a pensar?

   “Vejo um mundo demasiadamente agitado. Mas confesso que é apaixonante observar a vida daquela posição privilegiada. E é tão apaixonante, que tenho recusado várias ofertas de emprego que me permitiriam uma perspectiva futura mais aliciante, só porque não quero deixar o modo de vida que escolhi. Realmente a rua é onde vejo uma melhor compensação para o meu trabalho de “homem-estátua”. E quanto mais movimentado e frenético é o local onde me exibo, mais compensado me sinto. De resto, considero uma grande vitória quando faço parar uma pessoa mais de cinco minutos à minha frente.”

“Vai trabalhar malandro...
é o comentário mais comum em Portugal.
Já o ouvi tantas vezes
que os meus ouvidos deixaram simplesmente de o registar”

   É presumível que sejam muitos e variados os comentários que o “homem-estátua” ouve do alto do seu pedestal. Mas como reagirá ele às “bocas” menos agradáveis?

   “Vai trabalhar, malandro!" é o comentário mais comum em Portugal. Já o ouvi tantas vezes que os meus ouvidos deixaram simplesmente de o registar. Mas ainda há dias ouvi um comentário incrível: por razões que não vêm ao caso, estou separado da mãe do meu filho há cerca de um ano. Pois há três ou quatro dias atrás, quando eu estava em plena exibição, na rua, uma pessoa certamente amiga íntima da mãe da minha ex-companheira, pos-se a esbracejar na minha frente, com uma moeda na mão, a dizer que o dinheiro não era para mim mas para o meu filho e para a minha sogra! Enfm... um espectáculo montado em cima de outro espectáculo. Entretanto, no caderninho que está sempre no local onde trabalho, escrevem frases muito bonitas e que me dão muito prazer porque me incitam a fazer cada vez melhor. São pessoas isoladas e anónimas, grupos escolares, gente que gosta realmente do que faço. Em resumo, um comentário positivo anula muitas negativas.”

   António dos Santos (ou “Hã toino De lírio”, de seu nome artístico) já foi submetido a testes científicos pela Agência Espacial norte-americana NASA. As circunstâncias em que isso aconteceu são no mínimo curiosas...

   “Um dia apareceu no Diário de Notícias um anúncio que dizia: 'A NASA procura homens para a cama´. A seguir a este título chamativo lá vinha o que a Agência Espacial pretendia, de facto. Queria homens que se prestassem a ficar uma série de horas imóveis. Ora sendo eu recordista mundial da imobilidade, pensei: bom... eu sou o candidato número um a isto. Por coincidência ou não, nesse mesmo dia recebi em casa uma carta da NASA a convidar-me para a experiência, que consistia num estudo de micro-gravitação. Participei do mesmo com muito prazer.”

   António pratica diariamente a tal modalidade de Kum-nye, um sucedâneo do yoga indo-chinês. Com essa prática diária de duas horas mantém-se em forma para o seu trabalho. Contudo, a mesma não chega para debelar um problema que o acompanha desde criança: uma enxaqueca da qual nunca conseguiu descobrir a origem, nem a cura. Mas esse é um assunto a que já nem sequer dá atenção.
   Em contrapartida, dá muita atenção às letras.
   
   “Escrevi um livro que esgotou: ‘Alma e alucinações de uma estátua’ e tenho em preparação outro a que dei o título de ‘Afirmações de um animal’. Trata de coisas vistas pelo “homem-estátua” digeridas depois pelo cidadão normal que também sou. Actualmente vendo uns pequenos livrinhos, ‘Pensamentos de pedra’, escrito para mostrar às pessoas que, ao contrário do que muitos ainda pensam, em Portugal, eu não ando por aí a mendigar, mas sim a mostrar uma certa forma de arte corporal e a dar a conhecer o que povoa a cabeça de um ‘homem-estátua’.”

“Memórias de hoje
ou o pretérito perfeito
do futuro que não me espera”

   “Mendigar”: haverá quem pense que é isso o que “Hã toino De lírio” anda a fazer? Quando lhe dizem: “Vai trabalhar malandro!”, será isso que querem significar? É evidente que o trabalho do “homem-estátua” é muito difícil e não está ao alcance de qualquer um. Para exercer tão difícil mister há que possuir um sem número de predicados que estão longe, muito longe, do homem comum. Estar duas horas seguidas na mais completa imobilidade não é o mesmo que estar atrás de um balcão a aviar clientes ou andar pela cidade sentado ao volante de um automóvel com um palito entalado nos dentes. Estar ali feito “homem-estátua” exige muito mais esforço do que um trabalho comum. Esse é um facto tão evidente que só os mais obtusos não conseguem ver.
   Mas terá esse esforço a devida compensação?
   
   “Como já referi, tenho tido propostas muito aliciantes do ponto de vista económico. Só que, estou disso convencido, ao aceitar uma dessas propostas, ‘matava’ o “homem-estátua” em dois tempos. Assim, embora ganhando para o dia-a-dia sem grandes restrições, não me sobra o suficiente para constituir uma reserva que me coloque ao abrigo de problemas se não puder trabalhar. No fundo, estou consciente de que tenho um desgaste mais rápido do que um atleta de alta competição, e isso, claro, não deixa de me preocupar, como se compreende.”

   Se por fatalidade tal eventualidade viesse a ocorrer, lá se ia o “homem-estátua”, “Hã toino De lírio”. E aqui cabe uma questão pertinente: nesse caso, qual seria o futuro do cidadão António Gomes dos Santos? O que é que este pensa fazer se tal coisa acontecer?

   “Estou com 32 anos. Vou continuar nesta vida nómada, de que eu tanto gosto, até aos 35. Depois dedico-me talvez ao ensino do yoga, para o que estou devidamente habilitado. De qualquer maneira, o que fizer depois terá de estar ligado ao que faço agora. Antes, porém, ainda conto fazer uma carreira nos Estados Unidos, onde está muito na moda este tipo de trabalho, particularmente em S. Francisco, na Califónia; em Nova York (onde há uma senhora que faz de estátua da liberdade junto ao monumento com o mesmo nome). Não darei por terminada a minha carreira de “homem-estátua” sem fazer por lá uma digressão de rua. Depois, o futuro terá muito a ver com a minha resistência física, porque nem os médicos sabem dizer-me com razoável segurança até que ponto eu poderei aguentar esta vida.”

   Entretanto, como é que as pessoas amigas, os familiares, entendem e aceitam a profissão de “homem-estátua”, escolhida pelo jovem António dos Santos? Como é que qualquer um de nós reagiria se o nosso filho, irmão, marido ou amigo nos comunicasse: “Vou ser um homem-estátua!”?

   “No caso da minha família, pai, mãe, irmão, desde os tempos longínquos do liceu, quando me perguntaram se queria estudar ou trabalhar, fui responsabilizado pela minha vida. Mais tarde, quando, em Barcelona, decidi ser o “homem-estátua”, mandei ao meu pai uma carta e umas fotos, a reacção foi... ‘é mais uma 'loucura’, mas ele lá sabe o que há-de fazer da vida dele. Resumindo: aceitaram muito bem. O resto da família, que é bastante grande, dividiu a sua opinião: uns sim, outros não... mas no geral, não chegou a haver confrontação. Quanto à namoradas, elas têm-se apaixonado não pelo António mas pelo “homem-estátua”! Curiosamente, no relacionamento com a mãe do meu filho, nos primeiros 15 dias ela não conheceu o meu verdadeiro rosto, até que, enfrentando a própria família, saiu de casa para vir viver comigo. Claro que a família nunca aceitou bem essa ligação, acabando por dar no que deu: a separação.”

   “Memórias de hoje ou o pretérito perfeito do futuro que não me espera” foi título de um outro livro de prosa poética que António escreveu e que parece denunciar já a sua preocupação quanto ao futuro, o seu e o do mundo. As filosofias orientais, como o tauismo, têm sido matérias obrigatórias no percurso de formação intelectual de António, que as mescla depois com algumas teorias ocidentais, como os universos paralelos de Einstein e outras igualmente complicadas, suficientes para embaralhar as mentes de qualquer mortal que não se chame António Gomes dos Santos mas que a este oferecem uma concepção do futuro que escapa à compreensão da maioria.

   “Não sei mesmo se o futuro existe. Acho é que somos uma coisa em andamento, como o Universo. Tenho para mim que o futuro é uma expansão do tempo presente. Talvez seja por isso que não me detenho muito com a questão da reforma e coisas do género. Se calhar acabo por ter de pagar uma factura elevada se as minhas concepções da vida e do futuro estiverem erradas. Mas... depois logo se verá.”

   Conversar com um “homem-estátua” é, a um tempo, estranho e aliciante. Seja como for, no decorrer das duas horas em que alí estivemos, sentados, nem por um minuto deixei de perguntar-me que ser humano estaria por detrás daquele jovem que encontrou na imobilidade absoluta a forma mais plena de liberdade pessoal.

   “O ser humano que sou é aquele que o meu amigo tem estado a ver. Irrequieto, falador, exuberante. Sou o reverso mais completo do “homem-estátua”. Além disso, como qualquer outra pessoa, vivo muito de sonhos e do desejo de ser feliz.”
  
                                                                  ___________

Passaram 16 anos desde este meu encontro com o então jovem Hã toino De lírio. O vir falar dele agora mais não é do que uma resposta à inquietude que marca ad aeternum os que abraçam o jornalismo como profissão. Queiramos ou não, mesmo depois de passarmos o prazo de validade, à vulgarmente chamada reforma, continuamos a querer saber que destino tiveram os protagonistas das histórias que contámos. Há dias, passou-me pelas mãos o registo da reportagem sobre o ‘homem-estátua’ feita em 4 de Dezembro de 1994. De imediato senti o apelo: ‘que será feito do António Gomes dos Santos?’. Na hora seguinte estava à conversa com ele: 


Caro Luís
Continuo em forma, neste momento estou na feira internacional de  Frankfurt a realizar alguns shows. Nos últimos dois anos acrescentei a levitação às minhas estátuas vivas. Pode ver o que se passa comigo nos links abaixo.
Grande Abraço
Antonio
www.youtube.com/staticmantv
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http://www.facebook.com/humanstatue
www.staticman.org 

15 de março de 2011

Os abutres

Luís Farinha

Será a avidez desmedida, a má formação moral, a propensão criminosa ou o conjunto destes três pressupostos que explicam o desvario que nas últimas décadas fez aumentar até ao paroxismo os crimes de colarinho branco? Sejam estas ou outras as razões do desatino, parece chegada a altura de a Justiça mostrar que não é uma estrutura amorfa na sociedade portuguesa.

“Acho que o Governo não quer penalizar – pelo menos pela proposta que apresentou – não quer, efectivamente, penalizar a corrupção e os crimes económicos ou financeiros”. São palavras de Carlos Anjos, presidente da Associação Sindical dos Funcionários de Investigação Criminal, ao microfone da RTP. Tendo em conta a posição de Carlos Anjos e a responsabilidade que dela emana não se pode pretender que esta declaração seja feita de ânimo leve. Assim sendo, é de concluir que a mesma se presta a profunda reflexão. Mais ainda quando é corroborada por outras figuras ligadas à administração da Justiça, como António Martins, presidente da Associação Sindical de Juízes Portugueses (ASJP): Todas as pessoas, incluindo as que “estão dentro do sistema judicial” constatam que “os grandes casos de corrupção não chegam efectivamente a julgamento”. (à Agência Lusa em 28 de Julho de 2008).
É um cenário assustador? Claro que sim.

Mesmo tendo em conta a dificuldade em provar a sua prática, nota-se que há uma certa postura de “branqueamento”, por parte do sistema, relativamente às falcatruas económicas levadas a cabo por pessoas com elevado status social. Apetece colocar uma questão; se fosse mensurável, quem é mais criminoso: o indivíduo que furta um automóvel, o que assalta uma casa ou o sujeito que “desvia” uns milhões valendo-se do seu alto estatuto social, profissional ou do cargo público que exerce?

Assim, por que será que “o sistema” é lesto na penalização do primeiro, enquanto parece emperrado em relação ao segundo? Queiram ou não, no caso português têm sido os media a assumir e a cumprir a tarefa de chamar a atenção dos cidadãos para os escândalos resultantes dos crimes de “colarinho branco” ocorridos nos últimos tempos, a despeito do notório agastamento que tal prática desencadeia. É verdade que estes crimes já se registavam no tempo do Estado Novo, crimes calados à força para que não fosse posta em causa a dignidade das figuras e figurões que se acolhiam ao abrigo proteccionista do regime então vigente. Posta a questão desta maneira, parece oportuno lembrar que, entretanto, aconteceu o 25 de Abril para acabar com a bandalhice da ditadura.

Podem acusar-me de ler demasiados relatos sobre as práticas criminais da “Máfia”, “Camorra”, “Cosa Nostra”, “Ndangheta”, “Sacra Corona Unitá”. Acredito, porém, que talvez seria excessiva a presunção de que em Portugal os crimes económicos registados até hoje possam ter sido concebidos por qualquer organização de cariz mafioso. Na textura política decorrente da revolução dos cravos, tal cenário não colhe. Seria de uma enormidade absurda. Contudo, parecem dignas de crédito as notícias de grandes golpes de natureza económica que os media têm veiculado, pese embora o facto de estes crimes serem de difícil percepção pois são preparados por indivíduos com fácil acesso aos canais permeáveis à sua prática, gente que deita mão de todos os mecanismos e artifícios capazes de esconder as suas sombrias actividades através de manobras complexas.

Prova de que a sociedade lusa acomoda nas suas entranhas figuras capazes de crimes de “colarinho branco”, é a preocupação já manifestada por vários magistrados, dos quais merece destaque, pela sua frontalidade e ânsia de ver dignificada a justiça portuguesa, Maria José Morgado, directora da Procuradoria-geral Distrital de Lisboa, para quem a escalada deste género de crime é um facto irrefutável que tem de encontrar resposta adequada no âmbito de tribunais inflexíveis.

Tem sido um forrobodó nos últimos anos e isso é indesmentível.

Os casos são mais que muitos e todos eles levam à mesma lastimável conclusão: Portugal está a saque num cenário estranhamente parecido com o dos “abutres” que descem ao terreno afim de saciarem a sua voracidade no que resta das ruínas causadas pela calamidade que tudo destruiu.

Portugal atravessa um dos períodos mais difíceis das últimas décadas. A montante, a situação não oferece sinais que façam acreditar numa reviravolta económica que possa servir de esperança a este nosso maltratado País. Daí a acção duns quantos que, por excesso de cupidez, decidem guardar para si as migalhas que ainda restam, certos da impunidade que lhes confere o seu elevado estatuto ou a complacência dum sistema criado à sua medida.

É o “salve-se quem puder”.

Entidades bancárias, autarcas e gestores de empresas têm visto os seus nomes inscritos em processos que nunca mais acabam. Uns fogem, outros são detidos e outros ainda vão passeando lá por fora a sua pouca-vergonha. No fim de contas nada os distingue dos autores de crimes comuns, a não ser a enormidade dos delitos que cometem, esses sim, bem mais sórdidos, na medida em que traem a confiança de gente de boa fé.

11 de março de 2011

E quando falta um motivo para viver?

Luís Farinha
"Ainda agora não sei como se chamava aquela bela mulher. Nem onde morava. Como também não sei por que decidiu acabar com a vida"
Encontrava-a frequentemente no café onde há anos costumo tomar a bica.
Sempre sozinha, sentada em frente de uma chávena vazia, normalmente lia um jornal, um livro, deixava correr o tempo... enquanto fumava cigarro atrás de cigarro.
Era uma jovem na casa dos 30, morena, bonita, de cabelos longos e bem tratados... aquilo a que se pode chamar uma mulher interessante. Curiosamente, nunca a vi dar atenção ou conversar fosse com quem fosse. Toda ela, na sua conduta feita de silêncio deixava transparecer um ser solitário que apreciava manter-se afastado do convívio com as outras pessoas.
Apenas isso.
À força de a ver frequentemente por ali, taciturna, ausente, olhando sem ver, ouvindo sem escutar, acabei por me habituar à sua presença, como se fosse um adereço decorativo.    
E a verdade é que, devido ao hábito, quando eu entrava e a não via... ficava com a sensação de que o estabelecimento estava vazio. Como se da parede tivessem retirado um quadro que eu admirava.
Nunca procurei saber quem era aquela mulher. Para mim bastava-me o prazer daquela visão, presente quase sempre quando eu entrava. Depois, eu já cheguei àquela idade em que olho uma mulher bonita da mesma forma que admiro uma bela peça de arte.
Um dia... ela não estava lá!
Não estava, nesse dia, nem no outro a seguir, nem nos outros que vieram depois.
A verdade é que nunca mais a vi.
Um dia, como por acaso, falei dela ao empregado que me atendia. “O que é feito daquela senhora que se sentava todos os dias naquela mesa, ali"?
A resposta, apanhou-me completamente desprevenido!
"Suicidou-se" - respondeu o empregado. E acrescentou - "foi há quase um mês".
Fiquei mudo de espanto.
"Suicidou-se?" Perguntei, ainda incrédulo.
"Sim, matou-se! Era uma pessoa estranha, sabe? Acredite que nunca a vi sorrir. Parece que para ela o mundo não existia. Depois acabou por fazer aquele disparate!"
Ainda hoje não sei como se chamava aquela bela mulher. Nem onde morava. Como não sei que meio auto-infligido terá escolhido para acabar com a vida.
Dela, guardo a lembrança da sua beleza e da solidão imensa que deixava transparecer. E guardo também a convicção arraigada de que o suicídio é uma forma estúpida de resolver seja o que for.
Aparentemente, àquela mulher nada faltava para ser feliz. E perguntava-me o porquê daquela tristeza que lhe pressentia. Pelo menos era tristeza o que eu via, quando olhava para ela, sempre sozinha, sempre melancólica, rodeada do seu mundo invisível.
Afinal, pensei depois, devia faltar-lhe o principal, a coisa mais importante... um motivo para continuar a viver.

9 de março de 2011

A ditadura da moda

Já aqui fiz referência à moda das calças caídas, um jeito de vestir que deixa a descoberto uma parte do rabiosque dos seus seguidores já que os fundilhos ficam pela altura dos joelhos. É fixe, dirão uns, enquanto outros consideram esta moda como de extremo mau gosto. Seja bonito ou feio, sempre que me cruzo nas ruas com um ou outro jovem assim trajado não consigo evitar a lembrança do Cantinflas, um actor cómico mexicano que fez o encanto da minha meninice e que despertava gargalhadas aos mais sisudos graças ao seu modo peculiar de usar as calças tal qual como hoje se usam. A quem me vir a sorrir nessas ocasiões, garanto que não se trata de uma exteriorização de escárnio mas da evocação dum passado em que os portugueses ainda riam de coisas tão simples como esta.
A propósito, li há dias, não sei onde, que esta moda nasceu nas cadeias norte-americanas, servindo para distinguir os detidos homossexuais que assim anunciam aos outros presidiários a sua disponibilidade. Nos EUA a polémica levantada pela moda das calças caídas já deu até motivo à sua proibição em alguns estados e à intervenção pública do presidente Barack Obama. Eles lá sabem porquê…

Hoje vou continuar a falar de moda, desta feita, porém, referindo não os jovens irreverentes, mas os homens e mulheres que a ela aderiram. Refiro-me ao uso excessivo dos óculos escuros.
Estes acessórios sempre se usaram, sendo até recomendados a quem sente incómodo causado pela extrema luminosidade, especialmente da que resulta do Sol ofuscante do Verão. Os óculos escuros sempre foram usados também por aqueles que nasceram invisuais ou que perderam a faculdade de ver devido a circunstâncias várias. Refiro casos conhecidos como o de Ray Charles, José Feliciano e Stevie Wonder entre outros, que usam (ou usavam) óculos bem escuros para não constranger os auditórios que assistem (ou assistiam) aos seus concertos. Parece não merecer contraditório que o público não fica indiferente à deficiência do artista que enquanto exibe a sua arte, como é o caso de André Bocelli, teima em não usar óculos, facto que tem dado motivo a várias controvérsias.
O meu reparo, se assim puder ser considerado, não tem a ver com o seu uso, pois cada qual tem o direito e a liberdade de usar como adorno o que mais lhe aprouver. Tem a ver, sim, com a indelicadeza manifestada pela quase totalidade dos seguidores desta moda ao não darem conta da dificuldade que há em estar à fala com uma pessoa com óculos pretos colocados. Quando falamos com alguém para onde olhamos? Para o chamado ‘espelho da alma’, os olhos. Contudo, se estes estão tapados, qual é a alternativa? Olhar para a boca, de onde saem as palavras, naturalmente. Já considerou, então, o efeito indelicado de estarem a escutá-lo olhando-lhe para os dentes, língua, se não mesmo para as amígdalas? Num encontro fortuito ou propositado será assim tão difícil usar a delicadeza de tirar os óculos?
Pela parte que a mim respeita, confesso que não sou capaz de estar a falar com alguém enquanto olho sem pestanejar para uns vidros pretos que, em muitos casos, tapam metade do rosto.

7 de março de 2011

As muitas etapas duma vida co(u)mprida


José Viana


As muitas etapas

duma vida co(u)mprida

“Se ainda sonho? Claro que sonho, embora sejam sonhos com data de validade. Quer dizer: na minha idade tenho a consciência clara de que os sonhos, quando os tenho, vêm com um prazo mais curto para serem realizados”

Luís Farinha

Entrevista realizada e publicada em Março de 1997


Luís Farinha - Devo saudar o actor, o autor, ou o artista plástico?

José Viana - Oh, meu amigo! Penso que o melhor será saudar o homem que está aqui à sua frente e por trás dessas designações. Um homem que se dedica a várias actividades de cariz artístico mas que ainda hoje, tantos anos passados, ainda pára de vez em quando para fazer a si próprio essa mesma pergunta.


L.F. - Convido-o a meter-se comigo na máquina do tempo para revisitarmos a época da sua adolescência. Você, que é um homem multi-facetado, se voltasse ao princípio de tudo que carreira escolhia, em definitivo?

J.V. - Sou um sortudo, sabe? E considero-me assim porque toda a vida fiz aquilo de que mais gosto. Sempre trabalhei no que me dá mais prazer. Mas... respondendo directamente à sua pergunta: faria as mesmas opções que fiz.


L.F. - Admite que há muita gente a exercer a carreira errada, claro. Médicos medíocres que teriam sido uns óptimos engenheiros; advogados assim-assim que dariam uns excelentes jornalistas; políticos que num palco estariam nas suas "sete quintas"... 

J.V. - Isso é uma coisa que me impressiona imenso, até porque passei por uma experiência que me deu a percepção clara do que será viver assim, na profissão errada, anos e anos a fio. Foi uma experiência terrível, mas que felizmente durou apenas um mês. Era fotogravador na casa Bertrand & Irmãos e aceitei um lugar na Sonoro Filmes, para trabalhar em publicidade. No entanto, no novo emprego acumulava essas funções com a de contabilista. Porém, como eu e os números temos uma inimizade visceral, chegava a chorar de desespero porque, por mais que fizesse, as somas das facturas saiam-me sempre erradas. Ao fim de um mês, já farto daquilo, disse ao patrão que me despedia porque não era capaz de somar a direito. Felizmente que, como o meu outro trabalho, na publicidade, o satisfazia plenamente, propôs-me que eu ficasse apenas nesta função.


L.F. - A partir daí...

J.V. - A partir daí passei a dar muito valor às pessoas que, para ganharem o pão, têm toda a vida que fazer uma coisa que detestam e para que não têm vocação.


"Vivi a minha vida, cometi erros, fiz coisas bem feitas, outras mal. Mas ficaria triste, muito triste, se as pessoas pensassem que, em qualquer situação, fui alguma vez motivado por intenção malévola"


L.F. - Zé Viana, não vamos iludir a verdade com rodriguinhos que não levam a parte nenhuma. Como a de toda a gente, todo o seu percurso foi amalgamado de muitos momentos felizes e de algumas tribulações. Acha que a vida lhe deve alguma coisa, ou considera as contas saldadas?

J.V. - Não me revejo nesse tipo de situação. Eu vivi a minha vida, cometi erros, fiz coisas bem feitas, outras mal... Hoje, com a minha idade, quando reflicto sobre o que ficou para trás fico contente à lembrança das coisas em que acertei, que fiz bem feitas, como fico aborrecido ao reconhecer que outras foram verdadeiras asneiradas. Entretanto, não deixo de considerar que as minhas acções, boas e más, foram sempre ditadas pelas circunstâncias. Agora, ficaria triste, muito triste se as pessoas pensassem que em qualquer situação fui alguma vez motivado por intenção malévola.


L.F. - O José Viana ainda sonha?   

J.V. - Claro que sonho! Embora sejam sonhos com data de validade. Quer dizer: na minha idade tenho a consciência clara de que os sonhos, quando os tenho, vêm com um prazo mais curto para serem realizados.


L.F. - Quando se perde a faculdade de sonhar, é porque a vida chegou ao fim...

J.V. - Esse é um conceito que está perfeitamente configurado no poema do Gedeão quando diz que sonhar é uma constante da vida.


L.F. - Recordo a primeira entrevista que lhe fiz, num camarim do Maria Vitória, já lá vão mais de 30 anos! Você era então um actor cheio de projectos para o futuro. Entretanto, a vida encarregou-se de introduzir algumas alterações nesses projectos mostrando-lhe novos caminhos, empurrando-o para novos destinos. Há um dez anos voltámos a conversar e nessa altura o Zé atravessava um período de algum desalento. Mais recentemente, aí por 92 ou 93, quando nos voltámos a encontrar para mais uma entrevista, já tinha voltado a retirar os pincéis da gaveta. E agora... que novidades há para contar sobre o José Viana? O que é que lhe consome o tempo neste período da vida?

J.V. - Actualmente estou pouco activo em quaisquer dos ramos a que me dedico. Faço um filme de vez em quando, como acontece agora...


L.F. - Mas vai pintando, claro!

J.V. - É verdade, mas se antes pintava dez horas por dia, agora só pinto dez horas por mês. Depois, esta mania de estar sempre a pôr em causa o que está estabelecido, de estar sempre a reformular os velhos clichés, transforma seja o que for num parto muito difícil...


L.F. - Então, se pinta dez horas por mês, como explica a frequência com que faz exposições dos seus trabalhos?

J.V. - ...mesmo assim é muita pintura!


L.F. - Ah é?

J.V. - Acredite que é!


L.F. - Tanto quanto sei, essas exposições têm tido sucesso.

J.V. - Ainda bem que é assim. Fico contente, até porque não consigo evitar de ter, como pintor, as reacções que habitualmente tenho como actor. Um actor gosta de agradar e, no caso da pintura, se ela agrada, eu fico igualmente feliz. Mas atenção! Isso não significa que eu esteja sempre satisfeito com o meu trabalho, ein? Quando acontece as pessoas gostarem de um quadro de que eu próprio não gostava... lá regressam de novo as minhas dúvidas! Lá volto eu a questionar os conceitos!


L.F. - Mas então, diga-me lá José Viana: o que é que o leva a questionar-se como artista?

J.V. - Ainda bem que agrado, tudo bem, mas acredite que eu não pinto para obter esse efeito. Eu pinto para ver se descubro até onde posso ir, o que posso mais oferecer ou propor na minha pintura. O problema é que nunca chego à resposta que procuro.


L.F. - Segundo Miguel Ângelo: a pintura é sempre um começo

J.V. - ... e é!


L.F. - Como há pouco eu dizia, a vida vai-se encarregando de modificar a nossa perspectiva acerca da vida, ao mesmo tempo que nós próprios nos vamos modificando também. No seu caso, quais foram as mudanças mais significativas que o tempo produziu em si, como homem, ao longo dos últimos 30 anos?

J.V. - Vou dispensando muita atenção aos acontecimentos e às mudanças que têm vindo a operar-se na sociedade. No entanto, 30 anos, quando já tenho 74... representa só um breve espaço de tempo. Por isso, recapitulando a minha vida adulta dir-lhe-ei que os factos que constituem hoje o meu património referencial foram a Guerra de Espanha, depois a 2.ª Grande Guerra, o advento do nazismo e, só mais tarde, o 25 de Abril.


L.F. - Pessoalmente, que marcas lhe deixou a vida?

J.V. - A penúria... com a separação dos meus pais quando eu tinha apenas três anos. A partida do meu pai para África em busca de uma vida melhor, destino de onde não regressou porque por lá morreu. As dificuldades económicas em que a minha mãe ficou atolada. O meu despertar para a política, através das conversas que ouvia aos estudantes na pensão que, entretanto, a minha mãe montara, como recurso para a nossa sobrevivência. Estes são na verdade os factos que me marcaram desde a primeira infância.


L.F. - Voltando ao Teatro... tem saudades do palco, hoje que vive praticamente afastado? Ou a pintura passou a ocupar um lugar tão importante na sua vida ao ponto de o fazer esquecer esse grande amor?

J.V. - Vou fazendo o gosto ao dedo quando de vez em quando aparece um trabalho que vale a pena. Ainda há muito pouco tempo fui com a minha mulher à Holanda fazer um espectáculo para os emigrantes. Confesso, no entanto, que já não tenho é muita pachorra para o trabalho repetitivo do Teatro. Duas sessões todas as noites, matinés aos domingos... não, para isso é que já não estou muito virado.


José Maria Viana Dionísio de seu nome completo nasceu em Lisboa em 6 de Dezembro de 1922 e faleceu, vítima de acidente de viação, em 8 de Janeiro de 2003, tinha 80 anos. 
José Viana começou por desenhar e depois por pintar. Chegou a ser cenógrafo, encenador, autor, cantor, compositor, mas foi como actor que se tornou mais conhecido, sobretudo no teatro de revista e, posteriormente, na televisão

5 de março de 2011

Os jovens

Nos últimos 20 anos quantas vezes sorri de comiseração quando via passar por mim os jovens com a fralda de fora, as calças rotas e uma barbicha mal semeada. Lembrava-me do tempo da minha juventude e fazia a comparação: meu Deus, como é possível termos chegado a isto, pensava…
Seguindo os ditames da moda, a rapaziada adoptou agora a moda das calças com os fundilhos pelos joelhos e uma crista armada no alto da cabeça, e eu já não sorrio. Com algum esforço, reconheço, acabei por compreender quão “bem comportado” eu tinha sido quando, com vinte e tal anos, ia ao alfaiate mandar fazer os meus fatos, sujeitando-me às duas ou três provas obrigatórias para que a obra ficasse nos trinques. É verdade que nesse tempo ainda não se tinha inventado o pronto-a-vestir, mas também não era preciso exagerar, penso agora. Contudo, era assim que todos se vestiam: os funcionários das repartições públicas e dos bancos, os empregados das lojas mais requintadas e dos escritórios disto e daquilo, os políticos - frequentadores ou não dos corredores do poder - a gente da noite e os que eram convidados para o que fosse, incluindo casamentos, baptizados e funerais. E só escapavam dos fatos (mas não das gravatas…) os que usavam fardas, como os carteiros, condutores dos carros eléctricos, motoristas de táxis e outros. Era um cenário que não se estranhava porque se alguém, nesses tempos, passasse na rua com as calças descaídas e o rabo meio à mostra podia suceder-lhe uma de duas coisas: ou era detido pelo polícia de giro (havia muitos nesse tempo) ou era metido num hospital de alienados.   
Os jovens de agora são mais soltos, menos formais, ou trajam assim porque vivem mais escravizados às modas do que nós quando tínhamos a sua idade?
Creio que esta é uma questão ainda mal resolvida.
Nos anos 40 e 50 do século passado não comprávamos roupas de marca, não corríamos, feitos tontos, atrás das etiquetas, gastávamos menos dinheiro e andávamos mais bem vestidos, dirão os que já cruzaram a meia-idade. Mas será que têm razão?

3 de março de 2011

A máquina de escrever


Lembro-me que a primeira máquina de escrever que usei neste meu ofício de escrevinhador era uma coisa chamada Adler que hoje jaz esquecida num obscuro recanto duma arrecadação de velharias. Comprei-a, já usada, numa casa de penhores. Habituado à caneta e ao aparo, quando comecei a ver a escrita que dela saia senti-me transportado ao cume do deleite.  Muitos anos passados, recusei até ao desespero o uso do computador. Para quê tal engenhoca se entre mim e a máquina de escrever tinha amadurecido uma cumplicidade inabalável? Por fim vi-me constrangido a aceitar o que se tornou inevitável: muito a custo fui (de má vontade…) aceitando a monstruosa modernice. Curiosamente, interrogo-me agora como me foi possível escrever, corrigir, alterar milhares de peças escritas para publicação sem a prestação tão cómoda e rápida do processador de texto. Hoje só me zango com o computador quando vejo um miúdo de 7, 8 anos a servir-se dele como eu gostaria mas, confesso, não sou capaz. Por isso limito-me a considerá-lo como uma máquina de escrever inteligente, acrescendo-lhe a vantagem de me ajudar na recolha de dados que antes me faziam perder imenso tempo.

2 de março de 2011

Ser velho é uma merda!




Se o leitor pertence ao número dos que já ultrapassaram os setenta é quase certo que ficou indignado com o título desta crónica. Acredite que até eu olhei enviesado para o amigo que se saiu com esta quando quis rematar a conversa em que discorríamos sobre os problemas trazidos pela idade. Dizia-lhe eu: “deixa lá… ser velho é ser sábio!” De pronto, sai-lhe a resposta que eu não esperava: “deixo lá o caraças… ser velho é uma merda!”
Despedimo-nos daí a pouco, e não é que enquanto me afastava acabei por lhe dar razão?
Na verdade será para acreditar quando nos dizem que “todas as idades têm a sua beleza”?
Que interesse tem que eu saiba mais do que um jovem com um quarto da minha idade? Que lhe interessa a ele a sabedoria que eventualmente acumulei enquanto percorri a estrada da vida? Pois não é verdade que os conceitos, os hábitos e as modas mudam mais depressa do que o tempo que eu hoje levo a subir ao meu terceiro andar? Não passo de um velho recipiente de coisas inúteis e fora de moda, coisas que já não servem a ninguém.
E ponto final.