7 de novembro de 2012

Quero o meu bairro de volta!

Luís Farinha


Nasci num dos bairros populares de Lisboa, um dos aglomerados onde, tradicionalmente, os habitantes se querem, se estimam e se entreajudam quando os problemas batem à porta. Assisti e participei num sem número de situações comprovantes dessa familiaridade amiga, experiências que me permitem, hoje, repudiar os inevitáveis contrapontos com que (alguns) sempre procuram estabelecer discordância opinativa. Vivi nesse bairro cerca de meio século, quase 50 anos. Ainda hoje lá vivem alguns familiares e os amigos que me restam neste último quartel da vida que Deus me deu para viver. Já não são muitos, é verdade, a idade não perdoa e há sempre um dia em que os mais quebrantados partem para a derredaiera viagem.

Um dia, provavelmente contagiado pelo 25 de Abril, numa das reviravoltas que sempre ocorrem depois de uma revolução, dando ouvidos ao apelo de mudança decidi partir de armas e bagagem para a periferia de Lisboa, de preferência - decidi - numa zona com o mar à vista. Hoje, decorridos que são trinta e muitos anos reconheço que me precipitei. Por razões que não sei explicar, as memórias que me trazem algum prazer têm sempre por cenário o velho bairro onde nasci e vivi a primeira metade dos anos que já conto, o que considero sintomático.

É verdade que encontrei um mundo novo, mais cosmopolita, cheio de gente diferente a morar em avenidas e ruas de ampla largura, algo bem diferente das vilas, becos e travessas daquela espécie de ninho onde nasci. É certo que nos primeiros anos tive o privilégio de poder contemplar o mar do alto do meu terraço - e utilizo o verbo ‘ter’ no pretérito perfeito simples porque, mesmo em desacordo com o Plano de Urbanização aprovado para o local, alguém autorizou a implantação de um masmarro de betão, de altura desmedida, mesmo em frente da minha casa. Reconheço que, talvez para me compensarem, acabaram por vender o andar em frente do meu terraço, a meia dúzia de metros, a uma senhora dotada de exuberantes atributos físicos que, quando eu lia ou escrevia no terraço, sentado na minha cadeira, me fazia companhia do outro lado da rua. Contudo, sendo eu uma pessoa de natureza discreta, pouco dada a deslumbramentos embasbacados, acabei por retirar do terraço o meu assento predilecto, transferindo-o para a traseira da casa, virada para um frondoso jardim de onde assistia aos passeios diários dos canídeos que, pela trela, ali iam (e continuam a ir…) satisfazer as suas necessidades fisiológicas. Isto aconteceu por altura da revolução dos cravos, como já referi, quando a modernidade se instalou no país.

Entretanto, passado que foi o período de encantamento que a mudança me ofereceu, dei por mim a ser invadido por um vago desapontamento que não tardou a transformar-se em franca consciência do erro cometido. Quero o meu bairro de volta. Não me sinto bem aqui. Falta-me qualquer coisa indefinida que se está transformando em pesadelo! Posto em palavras breves, eram estas as reflexões que ressumavam do meu estado de espírito malcontente. Sentia falta dos bons dias que dava e recebia quando pela manhã saia de casa a caminho do trabalho. Dos sorrisos de amizade que os acompanhavam. Dos reencontros ocasionais ou previstos com os amigos de todas as horas, os tais que me acompanharam e que eu acompanhei nos bons e maus momentos, deles e meus. Dos que partilhavam comigo e eu com eles as confidências mais intimas, os anseios que alimentávamos no decurso da mútua fraternidade que desde sempre foi a matriz das nossas relações, partindo depois felizes pelas palavras de incitamento ou de advertência que dava ou recebia. Não me restavam dúvidas de que os meus novos vizinhos eram diferentes, de natureza singular, pessoas feitas de matéria estranha à qual, por mais que me esforçasse, não conseguia adaptar-me.

Até hoje – e já lá vão trinta e tal anos – tudo continua na mesma. Na minha rua, nos prédios contíguos ao meu, vive muita gente que eu não conheço. Homens e mulheres com quem me cruzo desde há anos mas dos quais nem sei o nome, uma amalgama de cidadãos dos quais apenas distingo raríssimas excepções. Nada de cumprimentos, de um sorriso de simpatia, de um gesto desafectado. Todos preocupados apenas com as suas vidinhas privadas, com os seus ‘popós’ brilhantes, com a exibição ostensiva das suas singularidades, das trivialidades que os distingue dos demais. Do efeito que se esfalfam a mostrar quão acima estão da mediana ‘gentinha’ que os cerca, como eu.

Não! Realmente por mais que o deseje, confesso-me incapaz de vir a adaptar-me ao modus vivendi que caracteriza a zona que escolhi para viver. Só que, infelizmente, sou eu agora quem se recusa a mudar por estar velho demais para mudanças.

*
Quando abri a caixa do correio não queria acreditar. Numa folha de papel dobrada em quatro uma notificação da Polícia Municipal do concelho onde resido dava-me como destinatário de uma denúncia de contra-ordenação sob a acusação de “alimentar aves atirando pela janela produtos alimentícios”. Tal designação, abrangente, logo me trouxe a imagem bizarra de alguém ter estado entretido a atirar pela janela da minha casa: uns bifes do lombo, um cozido à portuguesa, um bacalhau com ‘batatas a murro’ ou uma bem temperada sopa de legumes para alimentar os pássaros.    

Fiquei estupefacto!

Indagando junto da minha consorte, veio pronto o esclarecimento: “fui eu, realmente”, confessou. “Quando vi tantas aves a depenicar em vão pelo meio da relva peguei num meio papo-seco, já duro, que tive o cuidado de humedecer, e lancei-o para o relvado do jardim (existente nas traseiras do prédio, como já referi) na intenção de mitigar a fome das aves que por ali deambulavam em busca do que comer. Nunca pensei” - diz-me ela agora - “que um pobre papo-seco ressequido tinha o poder de despertar o que de mais sórdido um indivíduo pode guardar na sua alma fétida: a avidez da denúncia”. Na altura, quando vi as aves em manifesta carência alimentar só me ocorreu lançar mão de algo que lhes calasse a fome. Agi impulsivamente e só depois racionalizei que o não devia ter feito”.

Compreendo a clara indignação da minha companheira de mais de meio século. Se a ocorrência tivesse tido lugar no velho bairro onde ambos nascemos e vivemos tantos anos certo estou que o vizinho incomodado com aquele gesto de ternura ter-nos-ia batido à porta para lembrar que é proibido dar de comer aos pássaros e que esse crime é ressarcido com pesadas coimas. No caso vertente, um reparo feito directamente, de viva voz, entre pessoas que se querem bem, lembrando a legislação vigente e o desejo de pretender evitar eventuais consequências punitivas, teria colmatado o delito cometido, sendo digna de agradecimento. Ao contrário, a descida à denúncia soez só serve para dar corpo a um ou mais pontos contidos no parágrafo que se segue:

Os tais produtos alimentícios (destaque-se o plural) que o denunciante viu como um banquete pantagruélico não passavam, afinal, de um meio papo-seco já impróprio para voltar à mesa. Torna-se assim evidente que a ideia de exorbitar o corpo de delito denunciado manifesta, no seu autor, duas ou três aberrações a ter em conta: 1) ao sujeito deve agradar-lhe alimentar (vá-se lá saber porquê…) uma mal dissimulada antipatia relativamente os seus vizinhos; 2) talvez considere que estes estão aquém do seu nível sócio-intelectual ou, em alternativa, 3)) padece de um pendor patológico delirante que era muito apreciado nas hostes repressivas do antigo regime mas que hoje só emerge em casos de incurável transtorno psicológico.

Crédulo como sempre fui e cônscio dos meus deveres de cidadão responsável desloquei-me às instalações da Polícia Municipal da minha zona de residência prontificando-me a liquidar a eventual multa. Entreguei o aviso deixado na minha caixa de correio e fiquei a aguardar. Contudo, pelo que observava, as sucessivas tentativas feitas para localizar o processo levantado contra mim mostravam-se teimosamente vãs. Até que por fim…

“Mau caro senhor, este papel é uma falsificação. Primeiro, não faz parte dos impressos padrão utilizados por nós para notificar quem quer que seja. Depois não encontramos nos nossos serviços qualquer referência a este caso. Aliás, nunca deixamos uma notificação na caixa do correio, entregamo-lo em mão e, no caso de o destinatário estar ausente, voltamos outra e outra vez até o encontrarmos.” E acrescentou “De resto o número de processo aqui indicado nem sequer existe”. E prosseguiu, com duas perguntas insistentes: “O senhor falou ou foi abordado por algum agente na altura da ocorrência? “Não viu nenhum agente no prédio?” Neguei as duas hipóteses, evidentemente. E finalmente ouvi a opinião de um agente que pela natureza das suas funções deve já ter testemunhado situações tão inverosímeis como a que eu apresentava: “deve ter sido alguém da vizinhança...”

Face às circunstâncias estranhas em que fui envolvido e depois de ter acedido ao pedido de autorização para fotocopiarem o malfadado papel, só me restou guardá-lo depois no bolso, agradecer a atenção dispensada e sair, cogitando para os meus botões: ‘quem teria falsificado o presumível documento? E com que propósito o fez? Quem seria capaz de tamanha abjecção?’ Claro está, que não sou adivinho, mas já galguei muita estrada de vida vivida e, nesse longo percurso, conheci alguns tratantes que confundi com gente boa e que me levaram ao engano. Daí ter somado, no caso que relato, algumas conclusões que não serão de todo desprezíveis. Permitam que as guarde para mim…    

Este episódio ocorreu de facto em Outubro de 2012 e a sua narração, aqui, vem à guisa de ilustração para que melhor se compreenda o texto que o antecede.