6 de novembro de 2017

No rescaldo da tragédia!

O texto que se segue foi por mim escrito e publicado em Agosto de 2003 aquando dos incêndios que devastaram Portugal, de norte a sul. Decorridos 14 anos e tendo em conta a recente repetição da  tragédia (desta vez muito mais grave em destruição da área ardida e em número de mortos) parece já não restarem dúvidas da comprovada incapacidade dospolíticos que se têm guindado à composição dos sucessivos governos, para tomarem medidas conducentes à protecção do património florestal português e da vida e haveres dos cidadãos. Quando hoje à distância de 250 anos se evoca o papel desempenhado por Sebastião José de Carvalho e Melo, "Marquês de Pombal", no monstruoso terramoto de Lisboa, em 1755, não se  pode deixar de reflectir de que massa era feita a força e a capacidade de decisão dos homens desse tempo recuado quando comparados com os que hoje se pavoneiam nos corredores do poder. O marquês era, de facto, um sujeito carregado de defeitos, porém, face ao tremendo acontecimento, deu provas inegáveis da sua enorme capacidade governativa.   



Luís Farinha

Imprevidência das populações. Desorganização das forças no terreno. Incapacidade dos meios governamentais em acautelar a riqueza florestal portuguesa. Tudo isto acrescido da actuação criminosa de autênticos terroristas a soldo ou por conta própria, são as bases em que parece assentar a tragédia que reduziu parte importante do país a um montão de ruínas fumegantes.
Os ecos das sereias dos bombeiros e dos gritos de quem clamava por socorro ou protestava contra a sua má sorte silenciaram, mas as imagens do drama vivido, essas vão perdurar pelos tempos que hão-de vir.
Uma coisa é certa: sendo as terras do interior maioritariamente habitadas por gente que já deixou para trás uma vida bem mais longa do que aquela que irão viver, para esses o cenário que os acompanhará até ao final dos seus dias será feito de desolação.
O balanço provisório dos fogos que durante dias lavraram de Norte a Sul de Portugal, apontam para cerca de 336 mil hectares de floresta ardidos (uma área quase equivalente ao distrito de Leiria e muito maior que o Luxemburgo). Quanto ao número de vítimas mortais ocasionadas pelos incêndios, contam-se 18 pessoas, entre bombeiros e cidadãos que se empenhavam no combate às labaredas. Entretanto, parece ser um dado adquirido que muitos desses incêndios foram provocados deliberadamente por mãos criminosas. Pelo menos, esta é uma conclusão pertinente que se pode induzir do facto de já terem sido detidos 71 suspeitos de fogo posto.
Agora, enquanto esbugalhamos os olhos de espanto com os números e dados que vão sendo apurados, vamos assistindo à habitual controvérsia gerada pelas declarações dos políticos que, em prodigiosos jogos de rins, vão tentando aligeirar as suas responsabilidades nos trágicos acontecimentos, ao mesmo tempo que as transferem para os seus adversários.
Lembram-se da ponte de Entre-os-Rios?
Pois é! É a essa linha de actuação a que me refiro...
Leal Martins, presidente dos Serviço Nacional de Bombeiros e Protecção Civil (SNBPC) admitiu em Portalegre, numa reunião com responsáveis distritais da Protecção Civil e bombeiros, que houve “muitos erros e descoordenações” no combate aos incêndios, atribuindo esses erros à falta de formação das pessoas que comandaram as operações. Ao mesmo tempo não deixou de arremessar algumas setas envenenadas: “Houve muitos erros e muitas descoordenações, mas também não foi como noticiaram as televisões e os jornais nacionais”. E acrescentou: “há muita matéria encomendada na comunicação social nacional”. Será que o presidente do SNBPC pretendia com isto fazer crer que os dramas que as televisões mostraram não ocorreram, de facto? Que foram encenadas as imagens de tragédia que todos nós vimos, de coração constrangido?
A quem devem ser assacadas responsabilidades pela tragédia que tornou Portugal mais pobre?
Muito se tem falado de desordenamento do espaço florestal português. Porém, quem legisla e fiscaliza esta matéria? Será o povo da Nação? Os jornalistas? Ou as entidades para o efeito nomeadas? Se são estas, como é óbvio, a quem cabe estabelecer as regras de ordenamento, porque é que o não fizeram em tempo útil, antes dos momentos de apuro como o que feriu Portugal, permitindo com a sua omissão que condições adversas tenham vindo a desencadear situações e chagas no tecido florestal que demorarão algumas décadas a sarar?
Apetece perguntar a que critério obedeceu a escolha de quem tão mal se saiu da incumbência...
No Verão de 1990, durante o segundo governo de Cavaco Silva, também ocorreram incêndios que, sem atingirem os estragos agora verificados, trouxeram mesmo assim o luto e sinais inconfundíveis da profunda desorganização do ineficaz sistema de combate aos incêndios florestais, então existente. Contas feitas, em menos de um mês, registaram-se cerca de 400 fogos, dos quais resultou a morte de várias pessoas e a destruição de mais de 15 mil hectares de vegetação, áreas de cultivo e animais. Face à calamidade, em Julho desse ano, a equipa parlamentar do Partido Comunista entregou um relatório na Assembleia da República, documento em que dava conta dos danos causados pelos fogos nas zonas Centro e Lisboa e Vale do Tejo. Baseado nas conclusões a que um grupo parlamentar do partido havia chegado numa visita efectuada às zonas atingidas, em Abril de 1991 foi então apresentado um relatório final. Nele eram propostas várias medidas de prevenção. O documento sublinhava as dificuldades de combate aos fogos apontadas pelos bombeiros e propunha a tomada de “medidas de emergência de curto, médio e longo prazo”. Entre estas, aquele partido recomendava a aquisição de mais meios aéreos, o ordenamento das áreas florestais e o reforço do seu patrulhamento. Entretanto, uma dúzia de anos depois conclui-se que essas propostas acabaram mesmo por não sair do papel.
Em termos políticos, a postura da avestruz é uma comodidade que sai sempre custosa de mais ao povo duma nação.
Quanto ao patrulhamento e ordenamento do território florestal recomendado na referida proposta do PCP, tudo indica que as entidades oficiais acharam mais fácil atribuir a responsabilidade dos eventuais flagelos incendiários à imprevidência dos pequenos agricultores, à ineficácia dos bombeiros e aos excessos da Comunicação Social.
Resumindo, face à enorme dimensão do que agora aconteceu, no passado dia 14 deste mês de Agosto o debate foi de novo levado à Assembleia da República, tendo-se concluído pela prevenção e combate dos futuros incêndios. Falta saber se num outro qualquer amanhã de desgraça colectiva, voltaremos a assistir aos mesmos discursos, protestos e acusações que ouvimos nos fatídicos verões de 1990 e de 2003.
Repetindo o que ouvimos ao deputado Manuel Alegre: “não é com discursos de fuga à responsabilidade ou de justificação que se pode impedir que tragédias como estas se abatam sobre o país”.
Uma última nota...
Logo que o povo português se apercebeu da dimensão da catástrofe que assolou Portugal de Norte a Sul, imediatamente se geraram movimentos de solidariedade em favor das vítimas. Entre eles, os canais de televisão incentivaram os cidadãos a fazerem chamadas telefónicas cujo produto reverterá para um fundo de auxílio às vítimas. O custo de cada chamada é de 0,50 euros mais IVA. Isto quer dizer que 19 por cento do valor de cada telefonema vai parar, direitinho, aos cofres do Estado. Exemplificando: já com o IVA, o custo da chamada fica em cerca de 0,60 euros. Esta é uma situação que nos mostra claramente como neste país são vistos os movimentos populares de solidariedade.
A menos, claro, que a senhora ministra das Finanças já tenha decidido calcular o montante do IVA que venha a ser recolhido na circunstância, oferecendo-o às vítimas da tragédia que ensombrou Portugal neste Verão de 2003.
Se assim for, só me resta apresentar desculpas.