6 de novembro de 2017

No rescaldo da tragédia!

O texto que se segue foi por mim escrito e publicado em Agosto de 2003 aquando dos incêndios que devastaram Portugal, de norte a sul. Decorridos 14 anos e tendo em conta a recente repetição da  tragédia (desta vez muito mais grave em destruição da área ardida e em número de mortos) parece já não restarem dúvidas da comprovada incapacidade dospolíticos que se têm guindado à composição dos sucessivos governos, para tomarem medidas conducentes à protecção do património florestal português e da vida e haveres dos cidadãos. Quando hoje à distância de 250 anos se evoca o papel desempenhado por Sebastião José de Carvalho e Melo, "Marquês de Pombal", no monstruoso terramoto de Lisboa, em 1755, não se  pode deixar de reflectir de que massa era feita a força e a capacidade de decisão dos homens desse tempo recuado quando comparados com os que hoje se pavoneiam nos corredores do poder. O marquês era, de facto, um sujeito carregado de defeitos, porém, face ao tremendo acontecimento, deu provas inegáveis da sua enorme capacidade governativa.   



Luís Farinha

Imprevidência das populações. Desorganização das forças no terreno. Incapacidade dos meios governamentais em acautelar a riqueza florestal portuguesa. Tudo isto acrescido da actuação criminosa de autênticos terroristas a soldo ou por conta própria, são as bases em que parece assentar a tragédia que reduziu parte importante do país a um montão de ruínas fumegantes.
Os ecos das sereias dos bombeiros e dos gritos de quem clamava por socorro ou protestava contra a sua má sorte silenciaram, mas as imagens do drama vivido, essas vão perdurar pelos tempos que hão-de vir.
Uma coisa é certa: sendo as terras do interior maioritariamente habitadas por gente que já deixou para trás uma vida bem mais longa do que aquela que irão viver, para esses o cenário que os acompanhará até ao final dos seus dias será feito de desolação.
O balanço provisório dos fogos que durante dias lavraram de Norte a Sul de Portugal, apontam para cerca de 336 mil hectares de floresta ardidos (uma área quase equivalente ao distrito de Leiria e muito maior que o Luxemburgo). Quanto ao número de vítimas mortais ocasionadas pelos incêndios, contam-se 18 pessoas, entre bombeiros e cidadãos que se empenhavam no combate às labaredas. Entretanto, parece ser um dado adquirido que muitos desses incêndios foram provocados deliberadamente por mãos criminosas. Pelo menos, esta é uma conclusão pertinente que se pode induzir do facto de já terem sido detidos 71 suspeitos de fogo posto.
Agora, enquanto esbugalhamos os olhos de espanto com os números e dados que vão sendo apurados, vamos assistindo à habitual controvérsia gerada pelas declarações dos políticos que, em prodigiosos jogos de rins, vão tentando aligeirar as suas responsabilidades nos trágicos acontecimentos, ao mesmo tempo que as transferem para os seus adversários.
Lembram-se da ponte de Entre-os-Rios?
Pois é! É a essa linha de actuação a que me refiro...
Leal Martins, presidente dos Serviço Nacional de Bombeiros e Protecção Civil (SNBPC) admitiu em Portalegre, numa reunião com responsáveis distritais da Protecção Civil e bombeiros, que houve “muitos erros e descoordenações” no combate aos incêndios, atribuindo esses erros à falta de formação das pessoas que comandaram as operações. Ao mesmo tempo não deixou de arremessar algumas setas envenenadas: “Houve muitos erros e muitas descoordenações, mas também não foi como noticiaram as televisões e os jornais nacionais”. E acrescentou: “há muita matéria encomendada na comunicação social nacional”. Será que o presidente do SNBPC pretendia com isto fazer crer que os dramas que as televisões mostraram não ocorreram, de facto? Que foram encenadas as imagens de tragédia que todos nós vimos, de coração constrangido?
A quem devem ser assacadas responsabilidades pela tragédia que tornou Portugal mais pobre?
Muito se tem falado de desordenamento do espaço florestal português. Porém, quem legisla e fiscaliza esta matéria? Será o povo da Nação? Os jornalistas? Ou as entidades para o efeito nomeadas? Se são estas, como é óbvio, a quem cabe estabelecer as regras de ordenamento, porque é que o não fizeram em tempo útil, antes dos momentos de apuro como o que feriu Portugal, permitindo com a sua omissão que condições adversas tenham vindo a desencadear situações e chagas no tecido florestal que demorarão algumas décadas a sarar?
Apetece perguntar a que critério obedeceu a escolha de quem tão mal se saiu da incumbência...
No Verão de 1990, durante o segundo governo de Cavaco Silva, também ocorreram incêndios que, sem atingirem os estragos agora verificados, trouxeram mesmo assim o luto e sinais inconfundíveis da profunda desorganização do ineficaz sistema de combate aos incêndios florestais, então existente. Contas feitas, em menos de um mês, registaram-se cerca de 400 fogos, dos quais resultou a morte de várias pessoas e a destruição de mais de 15 mil hectares de vegetação, áreas de cultivo e animais. Face à calamidade, em Julho desse ano, a equipa parlamentar do Partido Comunista entregou um relatório na Assembleia da República, documento em que dava conta dos danos causados pelos fogos nas zonas Centro e Lisboa e Vale do Tejo. Baseado nas conclusões a que um grupo parlamentar do partido havia chegado numa visita efectuada às zonas atingidas, em Abril de 1991 foi então apresentado um relatório final. Nele eram propostas várias medidas de prevenção. O documento sublinhava as dificuldades de combate aos fogos apontadas pelos bombeiros e propunha a tomada de “medidas de emergência de curto, médio e longo prazo”. Entre estas, aquele partido recomendava a aquisição de mais meios aéreos, o ordenamento das áreas florestais e o reforço do seu patrulhamento. Entretanto, uma dúzia de anos depois conclui-se que essas propostas acabaram mesmo por não sair do papel.
Em termos políticos, a postura da avestruz é uma comodidade que sai sempre custosa de mais ao povo duma nação.
Quanto ao patrulhamento e ordenamento do território florestal recomendado na referida proposta do PCP, tudo indica que as entidades oficiais acharam mais fácil atribuir a responsabilidade dos eventuais flagelos incendiários à imprevidência dos pequenos agricultores, à ineficácia dos bombeiros e aos excessos da Comunicação Social.
Resumindo, face à enorme dimensão do que agora aconteceu, no passado dia 14 deste mês de Agosto o debate foi de novo levado à Assembleia da República, tendo-se concluído pela prevenção e combate dos futuros incêndios. Falta saber se num outro qualquer amanhã de desgraça colectiva, voltaremos a assistir aos mesmos discursos, protestos e acusações que ouvimos nos fatídicos verões de 1990 e de 2003.
Repetindo o que ouvimos ao deputado Manuel Alegre: “não é com discursos de fuga à responsabilidade ou de justificação que se pode impedir que tragédias como estas se abatam sobre o país”.
Uma última nota...
Logo que o povo português se apercebeu da dimensão da catástrofe que assolou Portugal de Norte a Sul, imediatamente se geraram movimentos de solidariedade em favor das vítimas. Entre eles, os canais de televisão incentivaram os cidadãos a fazerem chamadas telefónicas cujo produto reverterá para um fundo de auxílio às vítimas. O custo de cada chamada é de 0,50 euros mais IVA. Isto quer dizer que 19 por cento do valor de cada telefonema vai parar, direitinho, aos cofres do Estado. Exemplificando: já com o IVA, o custo da chamada fica em cerca de 0,60 euros. Esta é uma situação que nos mostra claramente como neste país são vistos os movimentos populares de solidariedade.
A menos, claro, que a senhora ministra das Finanças já tenha decidido calcular o montante do IVA que venha a ser recolhido na circunstância, oferecendo-o às vítimas da tragédia que ensombrou Portugal neste Verão de 2003.
Se assim for, só me resta apresentar desculpas.

1 de março de 2015

A vida é isso aí

Luís Farinha

A vida é mesmo assim, formada de algumas coisas boas, à mistura com muitas outras que nos deixam amedrontados.

Meus amigos... a vida é tudo isso, mas é também a única que temos. E, mais que não seja, isso é já razão bastante para não nos deixarmos vencer nas horas amargas, porque depois de cada instante há sempre outro que vem chegando, e tudo na nossa vida só precisa de um breve momento para mudar.

É por isso, meus amigos que eu - apesar dos anos que já deixei para trás - continuo a acreditar que daqui a um minuto, a uma hora, a um dia, a vida me vai dar, finalmente, aquilo por que eu sempre esperei, que eu sempre desejei...

É uma postura optimista, um acto de fé, uma forma de estar na vida. Pode ser uma dessas coisas… podem ser essas coisas todas.

Atingi aquele estágio da existência em que só me resta a esperança de assistir ao renascer das manhãs que ainda estarão para vir. E se os primeiros alvores me trazem a notícia de mais uma iniquidade das que hoje fazem parte do quotidiano, entristece-me pensar que de tudo o homem é culpado: a ambição desmedida, a falta de sentido da honra, a valorização do vazio, o abuso do poder, a demagogia, a cultura do protagonismo, são as moléstias que fizeram da sociedade aquilo que ela é hoje.

A vida, meus amigos, não é bem aquilo que a maioria de nós sonhou, realmente não é. Contudo, é importante que não percamos a faculdade de sonhar, de amar a vida. É importante, sobretudo, que mantenhamos a perspectiva de que, para cada um de nós, tudo na vida pode mudar num instante apenas, bastando para isso um pequeno quase nada e, sobretudo ter fé… muita fé!

Recordo-me que quando era jovem quase sempre adormecia com um pensamento que me fazia feliz. Acreditava então que o dia de amanhã seria o tal em que, finalmente, me iria acontecer aquela grande aventura que eu esperava há muito tempo.

Era um pensamento ingénuo?

Talvez fosse, mas a verdade é que ele alimentou grande parte da minha adolescência.

E sabem uma coisa? Muitos anos depois, nesta idade em que normalmente os sonhos já não comandam a vida, ainda dou por mim, de vez em quando, a adormecer com o pensamento de que o amanhã que aí vem é que me trará, finalmente, a realização do tal desejo que sempre me embalou.


13 de fevereiro de 2015

Histórias antigas

Foi há muitos, muitos anos
… meio século, talvez mais,
quando eu a conheci.
Foi no miradouro do Monte
no velho bairro da Graça.

Num tempo
em que a noite
não era berço do crime
juntavam-se, no mirante
com vista para a cidade,
jovens, idosos, famílias,
em busca de algum descanso.

Duas senhoras, sozinhas,
suspendem o seu passeio
os olhos postos em mim,
… afastado, com amigos.
Mãe e filha, assim cuidei,
só assim podia ser…
o que logo confirmei
quando ao passarem por mim
a senhora, cutucando-me,
sorrindo, me perguntou…
É o filho da Virgínia?
Que sim, eu respondi,
… "pois então nós somos primos!"
e explicou por quê…
Disse-me logo quem eram
e referiu seus nomes.
"Em segundo grau apenas
mas mesmo assim parentes!"
acrescentou a senhora
já de sorriso alargado.

A jovem, muda, circunspecta
foi a tudo assistindo
sem se meter na conversa.
Olhava-a de soslaio
nos meus 19 anitos:
esbelta, rosto bonito
simpática, muito agradável,
16 anos apenas,
corpo e pose de alguns mais…
fiquei tonto, lembro bem
a impressão que senti.

O namoro começou
um breve tempo depois
sem o pedido formal.
O convívio resultou
do apelo dos sentidos
que ambos partilhávamos.
A intimidade cresceu
tornando-se consensual
eu quero-te e tu me queres,
o destino está traçado!

Três anos assim passaram
sem cansaço nem recuos,
sem excessos ou abusos.
Um beijo acontecia,
mas nunca disso passámos
… o namoro, nesse tempo,
bem diferente do de agora
não consentia os excessos
que hoje baralham tudo.

Mas um dia
…há sempre um dia
em que os sonhos se desfazem,
culpa minha, estou bem certo
porque a deixei esperando,
sem palavras, sem desculpas.

Outra mulher apareceu
… não namoro, é evidente,
mas que tudo me ofereceu.
Fui atrás da utopia
que o resto me fez esquecer,
e quando o caso findou
era já tarde demais…
Ela seguira outro rumo
outra vida, um novo amor,
… deixou-me só a lembrança
dum sonho que se desfez.
 
Os anos foram passando
no seu caminhar constante,
uns nascendo… outros morrendo
sem paragens, sem detenças
e dela nunca mais soube.

Até que…
recusando-me a partir
para o outro lado da vida
com o olvido a acompanhar-me,
procurei-a… encontrei-a
e a ela me apresentei.
Quem era eu, perguntou,
talvez pensando o pior…
o 'teu primo', não te lembras?
Queria dizer-te adeus…
Olhou-me de cima abaixo
não querendo acreditar
até que, voltando a ela,
recuperando a lembrança,
um sorriso me lançou
e os braços me abriu
…com algum constrangimento.
Falámos uns dez minutos
e parti, dizendo adeus,
com pena de não ter visto
os espelhos da sua alma
escondidos atrás duns óculos
que a moda agora impõe.

Luís Farinha

11 de novembro de 2014

O regresso

Luís Farinha


     Não vinha aqui há mais de um ano. É tempo, pois, de pedir desculpa aos que por acaso ou costume têm vindo aqui dar uma olhadela às prosas que me atrevo a alinhavar e viram frustrado o seu intento. Esta ausência deve-se a um período sabático que me impus até deixar passar a crescente onda de desânimo que me toldou a inspiração durante largo tempo. Na idade que já tenho e depois de uma vida vivida à exaustão, repleta de episódios e situações cujas memórias nem sempre são bem vindas, senti-me soçobrar ao peso dos acontecimentos que nos últimos tempos vêm infernizando o dia-a-dia dos portugueses. Daí a minha ausência deste espaço que outra coisa não intenta senão ajudar a despertar a vontade de pensar dos que não têm tempo nem pachorra para se porem a decifrar os porquês do que se lhes vai passando à volta.

     Vim ao mundo no último ano da década de 20 do século passado. Imaginem, portanto, quantos testemunhos fui acumulando em tão longo percurso, umas vezes como simples observador outras como interveniente mais ou menos directo. Quantos exemplos, bons, sublimes, maus e não raramente repulsivos fui acumulando no meu repositório de memórias. É por isso que não me custa admitir que sou, hoje, o idoso que a vida fez de mim: um velho inconformado, céptico, dado à cisma e à desesperança de que melhores dias virão para os que chegarem depois. Daí, o tom amargo que, por vezes, não consigo evitar nos textos que aqui deixo.

     Ao ouvir alguém afirmar que estamos em tempo de mudança, querendo significar que após o cumprimento da tarefa de devastação em curso virão dias melhores, penso que toda a razão me assiste quando, falando com os meus botões, raciocino que em mais de oitenta anos de vida todas as mudanças a que assisti redundaram no agravamento das parcas condições que parecem intrínsecas da raça lusitana. Como uma maldição, depois de cada curva da longa estrada que nos foi dado percorrer há sempre mais um buraco onde acabamos por nos atascar; é o que acontece agora, mais uma vez. Sustentam alguns que nada nos vem por acaso, que numa espécie de destino marcado não nos podemos furtar àquilo que está prescrito no nosso código genético. Seja ou não assim, de alguma forma terá de ser explicada a razão por que, desde tempos imemoriais, este rincão localizado na ponta da Europa não consegue sair da tosca situação de penúria em que quase sempre tem vivido atolado. Em tempos recentes atribuíamos ao penoso regime político que nos submeteu a quase meio século de vergonhosa subserviência a causa da nossa penúria; quarenta e tal anos depois, numa manhã de Abril, um punhado de militares sem medo ofereceu-nos a oportunidade de mudar radicalmente tal estado de coisas erradicando a nefanda ditadura que nos mantinha açaimados. Após muitos anos passados desde então constata-se afinal que os ricos não param de enriquecer ainda mais enquanto os pobres continuam a ser esbulhados do essencial. Falta de talento dos que se voluntariaram para proceder à mudança?, talvez. Aproveitamento da oportunidade para uns quantos satisfazerem a sua ânsia de afirmação social e material?, não sei. Penso que as duas coisas têm um elo comum: a cega determinação de uma geração que acredita num mundo constituído por duas classes: uns milhões que trabalham para produzir riqueza e uns milhares que a chamam a si. Só isso pode explicar as injustiças sociais que, em permanente crescença,  marcam o quotidiano desta sociedade em convulsão.   

     Certo é que se antes alimentávamos a esperança de uma vida melhor quando - e se - o regime mudasse, verificamos - quatro décadas passadas sobre a tal manhã de Abril - que tudo mudou de facto: o português comum é hoje mais precário do que antes, sendo, para cúmulo, acusado pelos que se passeiam pelos corredores do poder de ser o causador da degradante penúria a que Portugal chegou. Antes era Salazar o culpado da pobreza em que nos arrastávamos, hoje somos nós, cidadãos, o alvo para que apontam os génios que - eles sim - alimentam o plano de empobrecimento em curso.

     Coisas do destino.  

     Bem… desculpas apresentadas, deixo ficar a promessa de que estou de volta. Virei aqui com a assiduidade possível para repartir com os leitores curiosos ou de passagem uma ou outra experiência ou memória singular por mim vivida nesta longa viagem através do tempo. Para além disso, apenas um ou outro apontamento sobre o desvario que vai por aí…        

26 de agosto de 2013

O português que se fala


Luís Farinha

 

 

     Sobrevoar Lisboa, de noite, no regresso de mais uma viagem de trabalho ou de prazer, é um gozo que se renova em cada vez que acontece. Pelo menos é o que eu costumo sentir. A última foi em 20 de Maio passado, no regresso de Lyon (França). Chovia quando embarquei, lá, e continuava a chover quando vi aproximarem-se as luzes da cidade de Lisboa. Num bom voo, como quase sempre, tentei cobrir aquele espaço de duas horas assistindo aos esforços dos assistentes de bordo (antigos comissários) a tentarem vender alguns artigos de discutível interesse e os jogos da raspadinha que, para minha surpresa, têm agora tanta saída lá em cima, entre as nuvens, como cá em baixo, nos cafés cá do meu bairro.

 

     Aterragem perfeita apesar da chuva persistente. Duas assistentes  portuguesas (antigas hospedeiras de bordo), na cabine junto à escada da saída, na cauda do avião, acompanhavam a operação de desembarque. Uma delas, armada de microfone, apresentava os habituais agradecimentos da companhia transportadora, à mistura com os avisos da praxe na hora do adeus. E foi aí que a coisa aconteceu. “Continua a chover, por favor tenham cuidado com os degraus, apõem-se nos corrimões”. Surpreendidas, ficaram a olhar o senhor que, na passagem, lhes recomendou a meia voz: “meninas, não se diz corrimões mas sim corrimãos” e iniciei a descida sem olhar para trás.

 

@

 

     Não sendo um 'crítico' no sentido em que, nos media, isso é entendido, não resisto à trazer aqui dois reparos que me causam uma espécie de urticária. Por isso aí vai...

 

Os 'Entões' estão na moda?

 

     Ouve-se todos os dias nas rádios e nos vários canais de televisão. Nestes, a moda pegou para valer. De microfone na mão, não há repórter que se preze que não avie meia dúzia de sonoros 'entões' durante uma intervenção de um ou dois minutos. É um regalo! Quase sempre a despropósito, o 'entões' saltitam de frase em frase salpicando a verborreia para que a notícia, o acontecimento, tenha mais emoção. Para que o público caia em êxtase perante tanto dinamismo jornalístico.

 

 

Exemplos ficcionados:

"É esperada hoje, no Porto, a chegada da rainha da Holanda afim de acompanhar a inauguração do 'Porto, Capital da Cultura'. Espera-se então que a rainha chegue por volta das 17 horas".

  

Ou:

 

Hoje, às quatro e meia da tarde, um grave acidente rodoviário pôs termo à vida de dois jovens de 23 e 29 anos. Uma viatura de alta cilindrada despistou-se então na recta do Dafundo, na Marginal, indo embater, de frente, numa camioneta de carga que seguia na direcção de Algés. Do brutal acidente resultou então a morte dos dois jovens que seguiam no BMW havendo ainda que lamentar ferimentos graves no condutor da camioneta. Quando os bombeiros chegaram ao local, poucos minutos após o acidente, já nada puderam fazer em favor dos dois jovens, limitando-se então a transportar para o hospital o motorista ferido.                

 

Ou:

 

"No Martim Moniz, em Lisboa, desabou um prédio que há muito ameaçava ruína.

Felizmente não se registaram então vitimas entre os moradores.

Foi ontem que a ocorrência teve então lugar numa das zonas mais tradicionais da Capital".

 

     Além de inaceitáveis por serem utilizados fora de contexto, estes "entões..." entram na lista daqueles lugares-comuns que os mestres designam por "bengalas" - expressões utilizadas apenas com o intuito de estabelecer a ligação 'começo, meio e fim' das frases que procuram a todo o custo adicionar emoção ao acontecimento que está a decorrer.

     É feio, inestético e confirma apenas a pobreza de recursos linguísticos do noticiarista.

     Embora muito menos frequente, o 'então' despropositado é já usado também por um ou dois 'pivots' televisivos. Daqui a teoria de se ter tornado moda a que alguns profissionais não conseguiram resistir. A confirmar-se essa eventualidade, torna-se ainda mais grave o que já por si me parece lamentável.         

 

Modismos (1)

 

     Ainda no âmbito da comunicação social falada houve tempos em que se tornou moda acrescentar a consoante "s" aos verbos terminados em "r". Assim, ouvia-se pronunciar frequentemente: "morrer´s" em vez de morrer; "viver´s" em vez de viver; "fazer´s" em vez de fazer; "ir´s" em vez de ir; "acabar´s" em vez de acabar; "sorrir's" em vez de sorrir; "escapar's" em vez de escapar; "escrever's" em vez de escrever; "falar´s" em vez de falar... Na prática, esta moda proporcionava frases com imensa piada, como: "Fique para ver's, é já a seguir's".

 

     A primeira pessoa a quem ouvi usar esta preciosidade, um novel apresentador que eu nunca vira antes, dava-se ares de grande vedeta. Profusa gesticulação, transbordante desembaraço, verbosidade fluida e uma forma estranha de a pronunciar. A incontida presunção de que dava mostras não demorou a arregimentar um sem número de seguidores. Rapidamente, aquele falar estranho transformou-se em moda irresistível, principalmente entre os recém-chegados à comunicação social falada. Hoje, muitos anos passados, a experiência acabaria por levar a melhor. Ele aí continua, na televisão, agora contido mas sempre fluente na palavra fácil, escorreita e despretensiosa. Um  apresentador aceitável.

 

Infelizmente, registo a continuidade desse modismo, que acabou por passar à história, na figura de um jornalista-pivot num dos canais generalistas. E sinto pena   que a sua sobriedade profissional não se estenda ao hábito malsonante dos 'esses' a terminarem os verbos acabados em 'erre'. A menos que tal anormalidade se deva a um defeito contraído na estrutura dentária, na língua ou no aparelho fonador. Se tal for o caso aqui deixo as minhas desculpas, consciente de que no melhor pano cai a nódoa.

 

Nota final (2)

 

     Creio que vale a pena explicar por que decidi trazer aqui estes dois reparos.

 

     É incontestável que o mundo está em constante mudança, porém nem sempre no bom sentido. Será por isso que sinto uma confessada relutância em aceitar o que se confunda com o mau gosto. A falta de brio profissional é, igualmente, um dos pecados que sempre me causaram arrepios, evitando por isso o contágio degradante que tal prática implica. Como jornalista de longo curso, vi - e continuo a observar - muitos sinais de degradação de uma profissão que em tempos idos criou grandes figuras mercê do zelo cuidado do seu desempenho. 

 

 

18 de agosto de 2013

Com sua licença, Senhor PM


Luís Farinha

  Permita-me, Dr. Passos Coelho, que lhe fale com franqueza: os seus actos enquanto chefe do governo têm vindo a demonstrar claramente – ao longo do tempo que leva no lugar que ocupa – que padece duma confrangedora carência de consciência social e humanista. Será isso, na minha opinião, que o impede de desempenhar com êxito pleno a função tão difícil que lhe foi confiada.

  Ostentando confrangedora insensibilidade, o senhor tem marcado os seus contactos com os dez milhões de portugueses que estão à sua mercê como se fossem os culpados da bancarrota que o País atravessa. E tal insinuação é falsa, como bem sabe, senhor primeiro-ministro. Os culpados desta desgraça devem ser encontrados em estratos que nada têm que ver connosco, os cidadãos rasteiros: políticos carreiristas, empresários de nomeada, especuladores financeiros sem carácter, ladrões furtivos que se escondem por detrás das posições-chave onde se delineiam os grandes negócios deste país em plena desordem social e económica à espreita de ocasiões propícias para desencadearem golpadas bem rendosas, corruptos e corruptores sem migalha de escrúpulos, gente suja que usa roupa cara enquanto se coloca a jeito para desviar para si ou para terceiros o que à Nação pertence. São eles e não o povo anónimo que, dando ouvidos aos apelos mil vezes repetidos pelos promotores do compre agora e pague depois, se atreveu a meter-se na compra a crédito de uma casa de duas assoalhadas para meter a família, de um carrito utilitário ou de uma ou outra bugiganga que a publicidade engenhosa dos grandes grupos de distribuição ainda agora lhes continua a enfiar pelos olhos adentro. O povo é fraco, senhor doutor, é fraco e talvez imprevidente, convenhamos, e os homens de negócios, no afã de embolsarem mais milhões, sabem bem como despertar-lhe o desejo de posse que vive latente no fundo dos seus anseios.

   Voltando à postura de juiz inclemente que o senhor exibe quando fala aos portugueses (lembro-me sempre de um professor que aturei na instrução primária…) concluo que de duas uma: está mesmo convencido de que somos nós, o povo, os culpados de tudo o que de errado e vil se passa em Portugal ou, não sendo assim, é porque o senhor carece da sensibilidade que se tem como indispensável a quem se voluntaria para desempenhar o cargo que lhe foi confiado.

   Perdoe-me a franqueza, senhor doutor, mas quando o vejo dirigir-se ao microfone para falar ao país e, com ar severo e dedo no ar, debita a sua reprimenda e anuncia a consequente punição que, mais uma vez, decidiu aplicar aos ‘culposos’, vem-me de imediato à ideia um antigo colega seu que ainda por cá andava há meio século atrás.

   E fico preocupado…
 
   Fico preocupado porque sinto reavivar a impressão de que o senhor doutor Passos Coelho parece não ter ainda entendido que foi escolhido não para dar continuidade ou cobertura à imundície que a súcia de espertalhões que o precederam no cargo que agora ocupa vieram espalhando ao longo de muitos anos. E é por isso que me atrevo a vir lembrar-lhe que o senhor foi eleito, exactamente, para acabar com esse crime. Que veio para acabar com as manobras de empobrecimento sistémico do povo, com o desígnio maquiavélico inventado para benefício dos abutres que enxameiam e conspurcam a política e a economia deste nosso rincão habitado por dez milhões de seres humanos, homens, mulheres, crianças e velhos que, acredito, na sua imensa maioria não merecem – não podem ser confundidos com essa canalha imunda.

   Face a essa carência elementar, própria de quem pouco sabe da vida, parece ser altura de lhe sugerir a toma de quaisquer medidas adequadas à correcção do lapso. Pode começar, senhor primeiro-ministro por imaginar-se a sobreviver, como um de nós, às dificuldades que tem vindo a implementar, cada vez mais contundentes e tomando por alvo preferencial o sacrificado povo do seu país.

   Não lhe quero mal, senhor, até porque – acredite – sou hoje um dos que se sentem responsáveis pelo lugar que ocupa. Votei em si não por erro de estratégia mas porque, apesar da minha idade avançada, conservo uma incurável tendência para acreditar nas patranhas que me contam.  

   Há pessoas que, pela sua dificuldade em conseguir medir a gravidade das consequências decorrentes dos seus actos, arriscam decisões que a teoria financeira aponta como recomendáveis mas que, na prática, revelam ser atentatórias da boa moral e injustas quando impostas a outros a quem é negado o direito de contrapor. É o que se passa em Portugal neste momento da história. Desta vez o seu intérprete é o senhor.

   Teimo em acreditar que não o faz por maldade, mas antes por carência de discernimento, por falta de experiência de vida.

   O que acabo de lhe dizer é um desabafo, eu sei. Talvez, antes, mais um grito de aflição face ao país sem esperança que estou prestes a deixar aos meus filhos e netos que olham assustados para o horizonte vazio que têm pela frente.

   Senhor primeiro-ministro pare para pensar, por favor. Procure – se ainda for a tempo – rever a incongruência da sua governação. Antes que o seu nome seja gravado na história como o coveiro desta nação milenar, chamada Portugal.

Obrigado. Passe bem…  

15 de julho de 2013

“Quem sabe faz, quem não sabe dá conselhos”

Luís Farinha


   É um ditado antigo que o quotidiano confirma a cada passo: “Quem sabe faz, quem não sabe dá conselhos”. Antigo, mas cada dia mais transparente entre os que criaram e alimentam a convicção de que a sabença se esgota nas suas mentes privilegiadas. Tal fenómeno ocorre, hoje, com inusitada frequência, sendo corriqueira entre os que se comprazem em exibir a erudição em que se têm como excepcionais.

   Os políticos, em particular, são useiros obstinados desta demonstração de superioridade sobre os outros mortais. Tal como os treinadores de bancada, também eles se convencem que as soluções inquestionáveis sobre o que for pulsam, latentes, nos escaninhos das suas mentes superiores. E é assim que, por artes e manhas, acabam por convencer os crédulos que o país só terá futuro com a sua contribuição. Só que, passado algum tempo de exercício no centro do poder, a maioria desses predestinados estatela-se ao comprido, acabando por sair de cena pela esquerda baixa.

   É isso que tem vindo a acontecer depois que os militares nos ofereceram a revolução dos cravos e os políticos garantiram que Portugal ia mudar. Tinham razão, caramba! O país mudou: hoje os ricos cresceram em número e ficam cada vez mais opulentos, enquanto isso a classe média foi já esfrangalhada e os pobres estão finalmente e sem contemplações, a ser promovidos a indigentes.

   Exagero? Olhem que não.

Haja em conta os despedimentos em massa, a miserabilidade crescente do povo, os desempregados sem esperança e, em particular os jovens sem futuro, a quem é negado um plano de vida, o direito a uma existência digna. Vale-lhes a sabedoria inesgotável do centro do poder que os aconselha a irem viver para outro lado, a procurarem além fronteiras o trabalho que aqui não encontram. E, brademos aos céus(!), é precisamente a estes, aos mais pobres, aos mais desprovidos, que os senhores governantes, os ‘cérebros’, apontam as baterias atribuindo-lhes a incumbência de pagar – não se sabe bem como – a famosa ‘austeridade’, designação exaustivamente repetida nos corredores do poder.

   Mas o que é ainda mais inacreditável, são esses – os que se autopromoveram a governantes dos dez milhões de portugueses – que ainda deixam a pairar a falsa ideia de que os culpados da situação paupérrima a que o país chegou são exactamente os pobres, os que têm sido permanentemente quilhados pela distinta galera política, um pecado que os torna, desde logo, merecedores dessa ‘penitência’.

   É o que ressalta da atitude sobranceira, altiva, arrogante, inquisitiva, exibida pelos senhores doutores Passos Coelho e Vitor Gaspar, quando vinham comunicar aos portugueses mais um agravamento ou introdução de uma nova taxa contributiva, um novo imposto ou mais um corte nas já paupérrimas reformas e pensões dos idosos deste desgraçado país.     

   Na verdade, talvez não possamos acusar os governantes, estes e os outros, de não terem mudado Portugal. Mudaram sim, senhores: transformaram-no num atoleiro, lotado de despojados.           
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   Aconteceu recentemente com o senhor doutor Gaspar quando, na sua missiva de adeus, teve a franqueza de – embora tarde de mais – reconhecer os becos sem saída em que se meteu, confundindo a árvore com a floresta. Afinal as teorias que tinha como infalíveis serviram apenas para precipitar no abismo o povo desta nação dando cabo da vida de milhões de portugueses que ficaram na miséria e de milhares de jovens a quem roubou o futuro que mereciam e a que tinham direito. Uma semana depois, sorridente, regressou à actividade que antes desempenhava: consultor do conselho de administração do Banco de Portugal. No seu gabinete confortável vai continuar a dar conselhos, acção em que é especialista, usufruindo da boa e rendosa vida que tinha antes da sua desgraçada aventura política. Com esta aprendeu, pelo menos, que para governar um país não basta manipular com mestria uma simples calculadora. Segundo ele próprio escreveu na sua carta de adeus, acabou por reconhecer que não fora talhado para a prática governamental. Algo que todos percebemos desde o princípio do seu desempenho, sem precisar de desenhos. Dar conselhos é, sem sombra de dúvida, o ofício que lhe cabe como uma luva.