4 de abril de 2011

Casa de prego

Luís Farinha


   Afazeres do ofício de escrever levaram-me um dia destes ao velho bairro de Alfama. Tratou-se duma espécie de viagem ao passado, sensação que ultimamente se vem tornando frequente, talvez porque com o correr dos anos o dia-a-dia vai, cada vez mais, sendo construído de lembranças dos tempos que foram ficando para trás.

   Outra das razões que me trouxeram de volta vivências que julgava definitivamente perdidas, é que Alfama pouco mudou desde os tempos em que, menino ainda, percorria aqueles becos e travessas, no desempenho do meu primeiro emprego.

   Já lá vai meio século, mas quando agora voltei a descer a Rua da Regueira e meti à Rua de S. Pedro, pareceu-me, às tantas, que reconhecia aquelas pedras que, tantos anos depois, os meus pés voltavam a pisar.

   Foi uma sensação inesperadamente aconchegante. Se calhar, porque de repente tomei consciência dos anos que passaram... e fiquei muito feliz por continuar vivo e a deambular, ligeiro, por aquelas esquinas familiares.

   Por momentos voltei aos tempos de menino - com 11, 12 anos - e recordei quando calcorreava aquelas ruas esconsas a mando do senhor Maurício, o dono da casa de penhores da Rua dos Remédios, para ir avisar a D. Maria do Carmo ou a senhora Filomena de que ia haver leilão e que era preciso ir com urgência ao "prego" pagar os juros em atraso...

   Essa era, então, uma das tarefas do meu emprego, na loja do senhor Maurício: subia as escadas, batia às portas, e envergonhadamente, lá dava o meu recado: “O senhor Maurício mandou-me cá dizer que vai haver leilão e que se a senhora não for lá pagar os juros em atraso...”, deixando implícita a ameaça de que os lençóis, o casaco ou a aliança empenhados seriam então vendidos a quem mais pagasse.

   Recado dado, lá voltava eu à casa de penhores. Pegava então na escova... e regressava a mais outra tarefa em que quase me tornei especialista: escovar os casacos, os sobretudos, as saias, os cobertores... antes que a traça entrasse com eles.

   Algum tempo depois, apareci em casa a chorar, dizendo que não aguentava mais aquilo. Relutante, a família concordou com a minha saída... desde que eu arranjasse outro emprego tão bom como aquele, onde já ganhava 30 escudos de 15 em 15 dias.

   E foi o que fiz, transferindo-me para uma serralharia então existente no Largo do Picadeiro, nas traseiras do Teatro São Luiz, no Chiado, onde malhava o ferro todo o dia ou carregava aos ombros peças de ferro fundido que ia entregar a quem as encomendara.

   Mas o gosto por Alfama, esse ficou!

  Daí em diante, sempre que me podia escapar... lá ia eu, rever o Chafariz de Dentro, a igreja de Santo Estêvão... ao fundo da Rua do Vigário, o Largo de São Miguel, o Castelo Picão... até que os caminhos da vida me levaram para outros rumos, para outras vivências, para outras paragens.

   Perdi o hábito de vaguear por Alfama.

   Há dias, quando lá voltei, foi como se tivesse feito uma viagem ao passado. Aliás, aquela foi também uma viagem a memórias que julgava já esquecidas. Pequenos episódios, histórias que já não me afloram há muitos anos surgem de quando em vez dos fundos do tempo, como a quererem significar que a vida continua, bem à minha frente, à espera de ser vivida.

   Só agora, com este regresso à velha Alfama da minha meninice, me dei conta de tantas coisas que deixei para trás. Coisas que, afinal, são parte indissociável da minha própria história...

                                                                                            

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