4 de dezembro de 2011

404 era o seu nome



Luís Farinha



Quando ele nos confidenciou que era funcionário do Jardim Zoológico de Lisboa, logo imaginámos aquele esgalgado de 1.80m a dar de comer – sei lá – aos macacos, aos leões ou às girafas. Entretanto, como confessou, nas horas vagas fazia com paixão teatro amador


Há episódios, figuras e factos tão marcantes na vida de todos nós, que nem o tempo, os anos que passam, conseguem apagá-los do registo das nossas memórias. O que hoje lhes vou contar passou-se há tanto tempo que só porque realmente se trata de um período singular da minha vida, é que ainda o guardo com toda a clareza no fundo das minhas lembranças.

Corria o ano de 1950. Há portanto muitos anos! O local onde tudo se passou, nessa data longínqua era, na época, um dos quartéis do Regimento de Artilharia Antiaérea Fixa, espaço que foi mais tarde transformado em sede da Legião Portuguesa, de má memória e posteriormente instalado o Comando-Geral da Polícia de Segurança Pública, na Penha de França, em Lisboa.

Foi ali que eu cumpri o serviço militar, dando à Pátria a contribuição que então era ainda obrigatória.

Todos os que nesse tempo eram jovens como eu, lembram-se ainda, com certeza, do que eram esses recrutamentos. Ainda se recordam como decorriam aqueles primeiros dias em que uma postura institucional obrigava mancebos das mais diferentes origens e estratos a conviverem à força, tentando vencer barreiras culturais que hoje se consideram geralmente intransponíveis.

Como sempre acontecia ano após ano, no recrutamento de 1950, lá, na Penha de França, apareceu um pouco de tudo: desde o jovem filho de família, a quem os anos de cabulice, no liceu, não conseguiram dar a possibilidade de se incorporarem como sargentos ou oficiais milicianos, ao rústico de Trás-os-Montes, das Beiras ou do Alentejo, rapazes que nunca tinham tomado um banho completo, nem mesmo na véspera de enfrentar aquele mundo desconhecido.

Lá, juntava-se de tudo, a esmo, sem barreiras, sem distinções e também sem privilégios.

Pois foi ali, no RAAF, que conheci aquele jovem alto, esquálido, com o aspecto de quem se pergunta a cada instante… “mas o que é que eu estou aqui a fazer?”

O número que lhe deram foi o 404 e, no momento em que esse número lhe foi atribuído, o seu nome seria de imediato relegado para o esquecimento, como mandava o regulamento militar. Todos os incorporados deixavam de ser indivíduos distintos para passarem a ser rebaptizados com um número abstracto, na nova qualidade de propriedade do Estado.

Uma noite, no silêncio da caserna, quando as confidências furavam a solidão restituindo aos jovens um pouco da individualidade deixada à entrada do portão de armas, o 404 também nos falou um pouco de si. Chamava-se… Varela e, segundo nos contou, era funcionário do Jardim Zoológico de Lisboa, uma confidência que fez rir os companheiros: de repente, todos imaginámos aquele esgalgado de 1,80m a dar de comer - sei lá - aos macacos, aos leões ou às girafas. Entretanto, como confessou, nas horas vagas fazia com paixão teatro amador. Aliás, no decorrer do tempo que se seguiu, quantas histórias reais testemunhei tendo o Varela como intérprete obrigatório, ali no quartel da Penha de França, e quantos serões clandestinos, no escuro das casernas ou da casa da guarda, passámos a ouvi-lo dizer versos interditos de poetas nesse tempo proibidos.

Recordo aquela vez em que o capitão Domingues o chamou, quando conversávamos, a quatro ou cinco metros de distância: “404… ó 404!” E o bom do Varela, nada… “Tu aí, ó 404!” insistiu o capitão. E nada de o 404 responder ao chamado. Exasperado, o oficial aproximou-se e com o mau modo que todos lhe conhecíamos, vociferou: “És surdo, ou quê, pá? Não ouviste eu chamar-te?” Com a surpresa estampada na cara, o magala responde: “Meu capitão desculpe!” E acrescenta com ar de inocente: “Sabe, meu capitão, há 20 anos que ouço chamarem-se ‘Varela’, agora, de um dia para o outro chamam-me 404 e não há meio de me habituar à mudança, desculpe…” Nessa altura o 404 desempenhava já o cargo de amanuense, na secretaria do quartel, dada a sua ‘comprovada’ inépcia para as coisas do foro militar, propriamente dito. Ali, nas calmas, sentado à secretária, de perna traçada, passava os dias à volta da escala de serviços dos oficiais e sargentos e de outras tarefas afins, enquanto cá fora na parada – ao sol e à chuva – os camaradas se desunhavam para acertarem o passo ou os movimentos das armas.
Verdade seja dita que na incorporação de 1950, no RAAF, na Penha de França, em Lisboa, ele foi o único soldado que nunca abdicou do nome com que foi baptizado, sendo por todos tratado por Varela.        

Depois da tropa cumprida e de muitas peripécias passadas naqueles dois anos que nunca mais acabavam, cada um dos mancebos voltou a fazer-se à vida, regressando uns ao amanho das terras, outros recuperando empregos anteriores e outros ainda cumprindo novos destinos. Eu, preparando-me para o ofício de jornalista, o Varela Silva - era esse o seu nome - seguindo a carreira teatral, agora como único modo de vida. Vida que nos juntou, depois, em ocasiões diversas, no cumprimento das nossas actividades. Entretanto o Varela casou com Celeste Rodrigues (irmã de Amália) e mais tarde com Simone de Oliveira, dois nomes também famosos.

O Varela Silva, nome consagrado dos palcos portugueses, deixou-nos vão já uns anos. Quanto a mim…

Bem... quanto a mim cá vou continuando, até que lá mais para a frente, numa nova incorporação, nos voltemos a encontrar, dessa vez já do outro lado da vida.

Sem comentários:

Enviar um comentário