9 de julho de 2011

No meu tempo…

Luís Farinha

“Há que ir aceitando as diferenças porque, desde a origem, o mundo está em constante mudança”, defendia o Henrique, um amigo meu, músico de profissão, filósofo por vocação, sempre que as conversas do nosso pequeno grupo se perdiam pelos emaranhados do “no meu tempo…”.
Jovem que eu era, na época a que me refiro, sentia então alguma dificuldade em levar a sério a mudança por ele anunciada como inevitável, coisa que desmentia a mesmice do quotidiano de que eu então já me queixava, sem dar conta de que a minha ânsia de viver, comum a todos os jovens, é que não me deixava descobrir que não há dois dias iguais.
Nessa altura, Henrique - o meu amigo - já ia nos quase sessenta, sendo eu o mais novo da pequena tertúlia que habitualmente, nos fins de tarde, ganhara o hábito de tomar o cafezinho no “Vává” da Av. De Roma, em Lisboa. Ainda não fizera os 30 anos e nessa idade, nos anos 50 do século passado, o tempo não corria como hoje.

Passaram os anos e, entretanto, o Henrique, há muito arredado do piano, partiu para o outro lado da vida. Os outros, como ele, são hoje apenas uma memória que ficou gravada no tempo. Os dois que restam, velhos p´ra caramba, já só se falam pelo telefone, nas vésperas dos dias festivos. Um deles sou eu, o mais novo, nos meus agora oitenta anos.

Triste já não fico…

Vem isto a propósito das mudanças do mundo e da sociedade a que hoje assisto com a sensação de que estou a ser esvaziado da matéria que fez de mim a pessoa que sou.
Curiosamente, é agora, quando já me habituei a contar os anos em modo decrescente e, em contrapartida, me entretenho a recordar as fazes da vida que me ficou para trás, que me dou conta da razão que tinha o meu amigo Henrique quando teimava em dizer que ‘o mundo está em constante mudança’.
Não digo que ainda fico muito triste quando leio em qualquer publicação ou página ‘cor-de-rosa’ a facilidade com que as jovenzinhas que fazem as delícias das telenovelas, da moda, ou da apresentação de programas e eventos, anunciam o fim dos seus romances amorosos, deixando, implícita, a sua disponibilidade para encetarem uma nova relação. Triste já não fico, mas ainda não consigo deixar de me surpreender com a facilidade com que o fazem, sabendo-se como se sabe que o adjectivo ‘namorado’ tinha, “no meu tempo”, um significado que não se pode confundir com a conotação um tanto licenciosa que hoje se lhe atribui.

O que ontem era repudiável é hoje admissível na sociedade moderna.

Outra mudança que me causa engulhos é a cada vez mais tolerada cupidez material, a falta de escrúpulos dum número crescente de espertalhões que tomam como um direito seu a fruição enviesada da riqueza que é pertença de todos. Foi a ganância desses quantos que permitiu a vulgarização de designações criminosas como corrupção, tráfico de influências, branqueamento de capitais, abuso de poder, fraude fiscal e crimes de colarinho branco, crimes que a imprensa nos traz de vez em quando. Noutros tempos, a tudo isso se chamava ‘desfalque’, ‘abuso de confiança’, ‘desvio’, ‘trapaça’, ‘corrupção’, ‘saque’ ou ‘roubalheira’ e os actores dessas proezas eram irremediavelmente condenados ao ostracismo geral. Hoje, por efeito da acomodação da sociedade aos novos tempos, tende-se a não levar muito a sério a gravidade desses delitos, havendo que reinventar uma forma de conviver com o que hoje é tido como “corriqueiro” fazendo com que os criminosos se passeiem impunemente pela comunidade. Um exemplo dessa espécie de impunidade vitalícia é-nos oferecido pelo anafado Vale de Azevedo. Por alguma razão a Justiça é tida geralmente como bastante indulgente em casos que tenham a ver com aqueles tipos de crimes, mormente em Portugal onde sua prática pegou moda.
Estes são apenas dois aspectos dos efeitos da aceitação das diferenças que marcam a sociedade dos dias de hoje. Aos mais antigos, continua a ser muito difícil acatar tal estado de coisas. Os outros, os que ainda não desenvolveram a capacidade de se indignar vão-nas aceitando com estranha naturalidade fazendo com que o que ontem era reprovável seja hoje entendido como normal e admissível numa sociedade moderna.
Os amanhãs que estão para vir mostrarão um mundo que hoje nos parece inaceitável.

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