4 de junho de 2013

Feia, suja e má

Luís Farinha


Para quê vir aqui armar ao pingarelho, fingindo o que não sou, tentando passar a ideia de que, sem a minha intervenção, o mundo acabará por soçobrar? De que me serviria dar-me ares de que, comigo, outros aprenderiam a conhecer aquilo que só eu fui (ou sou) capaz de decifrar? Que faço parte dos que ficarão na história por terem trazido ao mundo pilhas de sabedoria? Que interesse poderia ter o meu percurso de vida, para vir aqui brandir com petulância as experiências que acumulei, como se fossem singulares os amores que vivi, as pessoas que conheci, as proezas que realizei? A verdade é que nos meus muitos anos de vida nunca fui herói em actos relevantes, nunca encontrei motivos para me enfatuar. Limitei-me a ser um sujeito naturalmente pertinaz nos anseios e realizações que levei a cabo, sendo certo, no entanto, que feito o balanço, à distância de tantos anos decorridos só encontro agora mais motivos de contrição do que de ufania.

Pela ordem natural estarei na recta final duma vida que vai longa. Restam-me as lembranças guardadas nos recônditos da memória e uma constante reflexão sobre as pessoas e coisas que hoje fazem parte da minha história deixada para trás. Revivo muitos episódios que me foram gratos e outros que de bom grado melhor seria não terem acontecido. Revejo locais, rostos e figuras que pontuaram momentos imorredoiros do meu percurso de vida. E alguns, outros, que olhados à distância do tempo melhor seria não ter conhecido. Ouço ainda o eco de muitas palavras ditas e outras que me arrependo de ter calado. Vivi paixões correspondidas, mas tenho pena, hoje, de não poder recuar no tempo para pedir perdão de, em algumas delas, ter deixado crescer expectativas que não fui capaz de levar a bom termo. 

A vida ensinou-me muitas coisas importantes. Dela, estou certo, aprendi lições que contribuíram para a formação do ser humano que hoje sou. Só lamento, porém, que na recta final que agora vivo para nada sirva tanta experiência acumulada. Na corrida a caminho de um futuro que idealizei promitente esqueci-me de cultivar influências que aplanassem a longa estrada que tinha pela frente. Tarde, só agora me apercebo que devia ter parado para pensar, mas andava demasiado ocupado a trabalhar no duro, sem tempo para chamar a mim algumas das coisas boas que a sociedade mantinha em recato, guardadas para uns quantos escolhidos. Hoje, olho em redor quedando-me pasmado com as enormidades a que me é dado assistir, não reconhecendo o mundo em que me foi dado viver, o país de que sempre me orgulhei, a cidade onde nasci e vivi todas as fases desta minha vida cansada e as pessoas com quem me cruzava nos tempos em que ainda acreditava que a pulhice não passava de uma alusão retórica. Para meu desespero só tardiamente me apercebi de que por esta sociedade de faz de conta em que vivemos se pavoneia uma infinidade de celerados perversos disfarçados de “gente boa”. Eles andam por aí, dissimulados, espreitando oportunidades para lançar as unhas aduncas sobre os indefesos cidadãos. Nos negócios, nos corredores da política, no Estado e fora dele, nas ruas e às portas das nossas casas. É um mundo novo criado por legiões de homens sem honra, sem brio, vazios de dignidade. E é esse mundo que eu – com imensa pena – vou legar ao meu filho. Que ele um dia me consiga perdoar a leviandade de o ter chamado a esta vida que não pediu, feia, suja e má.

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