6 de setembro de 2012

À beira do abismo?

Luís Farinha


Quando iniciei a publicação do blogue “Histórias do tempo que passa” tive o cuidado de advertir os eventuais leitores de que este projecto consistia em tornar públicos alguns episódios ocorridos ao longo dos meus muitos anos de vida. Como então sublinhei, era minha intenção fazer eco de algumas estórias verdadeiras que pela sua peculiaridade pudessem mostrar aos homens e mulheres de hoje quão diferente é o tempo presente em comparação ao que então vivi. Contudo, ressalvei a possibilidade de uma vez ou outra me permitir abordar aspectos relativos à situação lamentável que Portugal atravessa, dando assim vazão à ansiedade que se aninha, subliminarmente, no sangue dos que um dia escolheram a minha profissão como modo de vida, tornando-nos incapazes de assistir, mudos e quedos, à sedição que nos envolve, por mais sossegados - ou afastados - que nos queiramos manter.

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Quem diria que a situação dramática que se vivia há pouco mais de um ano viria a decompor-se em ritmo imparável, como veio a acontecer?

Afinal, ao contrário do que muitos pensavam (eu incluído quando dei início a este blogue) Portugal não atravessava uma crise mais ou menos grave, igual ou parecida com outras antes ocorridas e mais ou menos resolvidas e ultrapassadas. Um ano e meio depois, ao que assistimos é à transformação da sociedade tal como a conhecemos durante largos anos. Afastámo-nos a passos largos e irrevogavelmente dum tempo que nos permitiu ir enganando o dia-a-dia num cenário político e económico que nos implantou a convicção de que depressa voltaríamos a viver de promessas, de desculpas, do faz-de-conta, do deixa andar, de “os ricos que paguem a crise”.

Afinal, pese embora as mensagens de esperança dos políticos no poder, esta crise – se assim preferirem chamar ao que está a acontecer – veio para ficar, não havendo quaisquer expectativas, assentes em bases consistentes, de que entretanto venha a ocorrer um retrocesso que nos leve a acreditar que estamos de regresso à vida que tínhamos antes do desencadeio da calamidade ora implantada. Vida que não era boa, na verdadeira acepção do que isso queira significar, mas à qual estávamos habituados, fazendo de nós, portugueses, se não seres acéfalos, insensíveis, pelo menos cidadãos acomodados e viciados na falsa convicção de que é ao estado que pertence o papel de mentor da nossa vida inteira.

Participar na vida colectiva da Nação é a obrigação de todos os que aqui nasceram e têm vivido. Esse é, de resto, o apelo subjectivo que o governo em exercício nos tenta inculcar sempre que tem em vista a introdução de mais uma taxa contributiva, o aumento de outra já existente ou a anulação de um qualquer benefício que antes servia de máscara à pobreza endémica dos portugueses. Trata-se, é verdade, de um recurso plausível no contexto duma nação em crise, mais ainda se se constatar que o “sacrifício” é repartido por TODOS proporcionalmente à condição económica de cada um, e que o próprio estado vai finalmente tomar em mãos a sua auto-disciplina pondo ponto final à rebaldaria de confundir gastos essenciais com esbanjamento à tripa-forra, uma das razões que empurraram Portugal para o lodaçal em que acabou por se atolar.

Mas será isso expectável?

Todos sabemos que não.

Quando na guerra do Solnado, um sábio sabido descobriu a forma mágica de poupar dinheiro nas munições que se gastavam no campo de batalha, estabelecendo que, daí em diante, atar-se-ia um cordel a cada bala que, depois do disparo, seria puxada para em seguida voltar a ser utilizada, todos ficámos boquiabertos com o sentido de poupança do tal estratega. Só que por azar nosso esse cérebro já deu a alma ao criador não nos podendo ajudar agora, nesta hora de aperto. Contudo, não consigo impedir-me de imaginar o que ele faria nas circunstâncias actuais… Homens daqueles já não há.

E é pena…

Crédulo como sou, confesso que senti reacender-se a minha já desgastada capacidade de expectação quando o actual painel governativo entrou em funções. Gente nova, aureolada com currículos profissionais de se lhes tirar o chapéu fizeram-me olhar com renovada esperança para os tempos que iam seguir-se. Para cúmulo, com uma ou outra excepção, a maioria dos elementos acabados de tomar posse não vinham contagiados pela gonorreia politiqueira que tantos estragos já tinham causado ao país nos sucessivos governos em funções desde há décadas a esta parte.

Foi curto o meu devaneio…

Um par de meses depois já não consegui evitar que a decepção me atingisse, acabando de vez com a ilusão de que - como ouvia aos velhos quando eu era criança - não há bem que sempre dure nem mal que não se acabe, um aforismo que, vim a descobrir mais tarde, nos empurrava para o conceito de que nada é definitivo, convidando-nos a aceitar as contingências do dia-a-dia, por mais dolorosas que fossem. Voltando porém à actualidade, decorrido o período da “Lua-de-mel”, conclui que as cadeiras existentes nas nobres salas do poder devem estar contaminadas com um vírus pestilento a que ninguém consegue resistir. Só isso, de resto, conseguirá explicar a mudança insidiosa que vinha já chispando sinais de alerta face a algumas acções inadequadas dos tão dotados(!) artífices da desejada (e prometida) recuperação da economia nacional. Só um eventual contágio infeccioso poderia explicar que a arquitectura do plano gizado com vista a essa recuperação passasse, desde logo, pelo sacrifício dos que menos condições económicas tinham para o fazer. Na repartição das medidas adoptadas, foi a classe não protegida que foi chamada a avançar enquanto os mais endinheirados, os ‘imunes’ (como lhes chama José Gil) se esfalfavam a pôr a salvo, no estrangeiro, as suas fortunas acumuladas à custa do esforço dos eternos ‘pagantes’ da Nação. Afinal, foi neste pequeno país, na ponta da Europa, que essas fortunas foram acumuladas - ou pelo menos iniciadas -, quer aceitemos ou não essa realidade.    


Embora discretamente afastado da política activa, Diogo Freitas do Amaral foi convidado da jornalista Fátima Campos Ferreira para uma entrevista na RTP, no passado dia 5 de Setembro. Razão do convite: comentar a situação preocupante que Portugal atravessa. Embora comedido nas suas observações, como é jeito seu, Freitas do Amaral não deixou de reconhecer que considera o actual executivo governamental como não estando à altura da tarefa para que foi nomeado, afirmando ainda que “A receita da Troika está errada”. A “austeridade punitiva” exercida pelo governo tomando por alvo preferencial a já tão debilitada classe média com o objectivo de enfrentar a actual situação, foi também comentada pelo entrevistado em jeito de crítica à incapacidade demonstrada para pôr em marcha outras medidas que, na sua opinião, terão sempre de passar pelo aumento da produtividade. Fugir a essa realidade, assegura, só pode aprofundar ainda mais a já dramática situação em que nos encontramos. Relativamente ao mutismo obstinado dos senhores governantes quando se evoca a falta de proporcionalidade sempre que se trata de impor mais um aumento fiscal, uma sobretaxa qualquer ou a criação de um novo imposto será curioso referir como a opinião de Freitas do Amaral acerca desta questão é coincidente com a da chamada classe média, a que mais sofre com a negação de uma mais justa justiça social. “Acho que devia haver, da parte do governo, uma tributação especialmente pesada sobre as pessoas que mais têm, porque há um velho princípio que consta da civilização ocidental e da doutrina cristã que é: ‘Dos que podem aos que precisam. E há muita gente a precisar e muita gente a não dar o que pode’. E o ex-ministro rematou: "Uma pessoa que, na modéstia dos nossos índices salariais, ganha mais de dez mil euros por mês é uma pessoa privilegiada. E os que ganham 50 [mil] são muito privilegiados. E os que ganham 200 mil euros, porque os há, esses são tubarões".

Do que tenho lido e ouvido ultimamente acerca do manifesto desmoronamento da sociedade portuguesa fico com a impressão de que a insistir em navegar nesta onda Pedro Passos Coelho se arrisca a ficar na história não como o salvador mas como o coveiro da pátria. Saldo que seria lamentável para ele, para mim que nele votei e para Portugal que bem merecia outro destino.

Vai longo o meu comentário. Mas como é óbvio, não podia deixar de explicar a que se ficou devendo o ‘desvio’ registado, relativamente ao projecto que há cerca de um ano e meio me lembrei de pôr em marcha.   

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