18 de agosto de 2012

Falando de leituras

Luís Farinha


Era ainda criança, 9, 10 anos, quando – vá-se lá saber porquê – apanhei o hábito (ou o vício?) de ler. Sem pruridos de escolha, livro que me caísse nas mãos era de imediato devorado, acontecendo que, na maioria dos casos, nada restava dele para o dia seguinte. Dado, emprestado, cedido pela biblioteca ambulante que todas as semanas, em dia certo, estacionava no Jardim da Graça, o velho bairro de Lisboa onde nasci e vivi metade da minha vida, certo era que nesse período distante a leitura era o meu passatempo preferido. Percorri Camilo, Eça, Torga, Herculano, Aquilino, Virgílio Ferreira, à mistura com outros, muitos outros autores portugueses que não tiveram talento ou tempo para marcar lugar na história da literatura. Em dada altura, saltei para os brasileiros Jorge Amado, Érico Veríssimo, Drummond de Andrade, Assis e uma lista infindável de policiais de bolso, numa amálgama de letras que se tornaram companhia cúmplice de noitadas bem passadas pela madrugada adentro, sempre atento ao “controlo” paterno para quem o gasto desnecessário da luz do candeeiro de petróleo ou das velas de parafina era absolutamente interdito. Quantas páginas virei debaixo dos cobertores para que a luz da vela não denunciasse a minha infracção às ordens impostas pela escassez económica reinante nos tempos da minha infância. Os “missais”, (era esta a designação intencionalmente depreciativa como lá em casa eram apodados os livros) vinham emprestar significado às palavras que mais adiante ouviria ao meu pai quando eu, dando vazão ao que me ia na alma, mostrei o firme propósito de continuar a estudar mal terminasse a instrução primária: “cá em casa não há espaço para doutores!” dizia, como se fosse ponto assente que “estudar” era um privilégio de ostentação exclusivo das famílias mais ou menos abastadas. Outros tempos, penso hoje, esbatida que está a decepção que então sentia, calado. Só mais tarde, já dono do meu querer, tive ocasião de preencher lacunas que ficaram abertas à espera de melhores dias. Cumpri o meu destino, atrevo-me a julgar. E isso serve-me de compreensão e consolo no ocaso duma existência muito vivida. As decepções vão-se diluindo ao longo de cada etapa vencida, aprendi, bem ciente, agora, de como a repetição dos equívocos em que tropecei pela vida fora contribuiu para a construção do céptico que hoje sou.

Do mal, o menos…
    
O tempo passou e ultrapassados que estão os oitenta recordo o meu pai com imensa saudade. Como hoje gostaria de ouvir a sua voz severa a ordenar-me: “acaba lá com o missal e apaga-me essa luz, se faz favor!”

Sorrio, mas não é por maldade, asseguro-vos…


*

Falando de leituras, permitam-me trazer aqui uma ocorrência curiosa, recente e que deveras me apraz contar-vos.

Leitor compulsivo, como já referi, confesso que ainda hoje – e talvez mais do que nunca - os livros continuam a ser a minha praia, como agora se diz. Romance, ensaio, biografia, história, policial… confesso a minha dificuldade em assumir preferência, pois se o conteúdo é apelativo e para cúmulo está bem escrito, qualquer livro suscita de imediato o meu interesse. Foi isso que aconteceu com a obra que acabei de ler, três volumes de peso cujo autor, confesso, me era desconhecido.

Fazendo a minha ronda habitual aos expositores da livraria que habitualmente frequento, deparei com um livro que desde logo me espevitou a curiosidade. O autor, um jornalista de nacionalidade sueca, prematuramente falecido, nada me dizia, como já referi, mas logo me apercebi que a sua escrita era fluida e isenta daqueles preciosismos linguísticos tão em moda, agora, mas dos quais confesso, começo a ficar cansado.



“Os homens que odeiam as mulheres” é o título do primeiro volume duma trilogia designada “Millenniun”. O autor: Stieg Larsson, era um jornalista e activista político olhado de soslaio pela extrema-direita sueca e alvo de várias ameaças de morte feitas por gente incomodada com a posição política que, enquanto jornalista, assumia publicamente.

Só a meio do terceiro volume da trilogia Millennium decidiu procurar editor para a obra a que deitara mãos. Quis o destino, porém, que não tenha assistido ao sucesso internacional em que a mesma haveria de se tornar, com cerca de 15 milhões de livros vendidos. Larsson morreu repentinamente, vítima de um colapso cardíaco fulminante (segundo a notícia oficial) ao subir apressadamente ao 7.º piso do prédio onde estava instalada a redacção da revista da fundação por si criada, a Expo, através da qual denunciava as poderosas organizações da extrema-direita do seu país. Tinha 50 anos.

Voltando à prometida ocorrência, nessa primeira noite de leitura do livro recém- adquirido (coisa para 539 páginas…) logo me apercebi da singularidade e da força emanante da história ali contada. Assim, num impulso repentino peguei no telefone e liguei para a livraria, no centro comercial, e fiz a pergunta que me impacientava: “Têm os 2.º e 3.º volumes da trilogia Millennium? Sim? Por favor reservem-me um exemplar de cada. Amanhã passo a buscá-los. Obrigado…”

Como já referi, terminei agora a leitura do último volume da obra. Foram, no seu todo, 2100 páginas lidas com incontida sofreguidão. Há muito que não assumia uma tarefa dessa ordem com tamanha absorção, não por culpa minha mas talvez porque, ao correr do tempo, me fui tornando mais exigente. Não terá sido por acaso que a Trilogia Millennium me prendeu à leitura com uma espécie de frenesim que me sabia tão bem. Daí o permitir-me pensar (como antes referi) que a culpa não é minha. Culpa, se alguém a tem, deve ser atribuída por inteiro a Stieg Larsson pelo talento enorme que teve a arte e o saber de passar para o papel.

Se a distracção, como aconteceu comigo, ainda não vos permitiu reparar na Trilogia Millennium aqui deixo a advertência: não deixem escapar a oportunidade de a compulsar.

Acreditem que vale a pena…

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