Luís Farinha
Era ainda criança, 9, 10 anos, quando – vá-se lá saber porquê – apanhei
o hábito (ou o vício?) de ler. Sem pruridos de escolha, livro que me caísse nas
mãos era de imediato devorado, acontecendo que, na maioria dos casos, nada
restava dele para o dia seguinte. Dado, emprestado, cedido pela biblioteca
ambulante que todas as semanas, em dia certo, estacionava no Jardim da Graça, o
velho bairro de Lisboa onde nasci e vivi metade da minha vida, certo era que nesse
período distante a leitura era o meu passatempo preferido. Percorri Camilo,
Eça, Torga, Herculano, Aquilino, Virgílio Ferreira, à mistura com outros,
muitos outros autores portugueses que não tiveram talento ou tempo para marcar
lugar na história da literatura. Em dada altura, saltei para os brasileiros
Jorge Amado, Érico Veríssimo, Drummond de Andrade, Assis e uma lista infindável
de policiais de bolso, numa amálgama de letras que se tornaram companhia cúmplice
de noitadas bem passadas pela madrugada adentro, sempre atento ao “controlo”
paterno para quem o gasto desnecessário da luz do candeeiro de petróleo ou das
velas de parafina era absolutamente interdito. Quantas páginas virei debaixo
dos cobertores para que a luz da vela não denunciasse a minha infracção às ordens
impostas pela escassez económica reinante nos tempos da minha infância. Os
“missais”, (era esta a designação intencionalmente depreciativa como lá em casa
eram apodados os livros) vinham emprestar significado às palavras que mais
adiante ouviria ao meu pai quando eu, dando vazão ao que me ia na alma, mostrei
o firme propósito de continuar a estudar mal terminasse a instrução primária: “cá em casa não há espaço para doutores!”
dizia, como se fosse ponto assente que “estudar” era um privilégio de ostentação
exclusivo das famílias mais ou menos abastadas. Outros tempos, penso hoje,
esbatida que está a decepção que então sentia, calado. Só mais tarde, já dono
do meu querer, tive ocasião de preencher lacunas que ficaram abertas à espera
de melhores dias. Cumpri o meu destino, atrevo-me a julgar. E isso serve-me de
compreensão e consolo no ocaso duma existência muito vivida. As decepções
vão-se diluindo ao longo de cada etapa vencida, aprendi, bem ciente, agora, de
como a repetição dos equívocos em que tropecei pela vida fora contribuiu para a
construção do céptico que hoje sou.
Do mal, o menos…
O tempo passou e ultrapassados que estão os oitenta recordo o meu pai
com imensa saudade. Como hoje gostaria de ouvir a sua voz severa a ordenar-me: “acaba lá com o missal e apaga-me essa luz,
se faz favor!”
Sorrio, mas não é por maldade, asseguro-vos…
*
Falando de leituras, permitam-me trazer aqui uma ocorrência curiosa,
recente e que deveras me apraz contar-vos.
Leitor compulsivo, como já referi, confesso que ainda hoje – e talvez
mais do que nunca - os livros continuam a ser a minha praia, como agora se diz. Romance, ensaio, biografia,
história, policial… confesso a minha dificuldade em assumir preferência, pois
se o conteúdo é apelativo e para cúmulo está bem escrito, qualquer livro
suscita de imediato o meu interesse. Foi isso que aconteceu com a obra que
acabei de ler, três volumes de peso cujo autor, confesso, me era desconhecido.
Fazendo a minha ronda habitual aos expositores da livraria que
habitualmente frequento, deparei com um livro que desde logo me espevitou a
curiosidade. O autor, um jornalista de nacionalidade sueca, prematuramente
falecido, nada me dizia, como já referi, mas logo me apercebi que a sua escrita
era fluida e isenta daqueles preciosismos linguísticos tão em moda, agora, mas
dos quais confesso, começo a ficar cansado.
“Os homens que odeiam as mulheres” é o título do primeiro volume duma
trilogia designada “Millenniun”. O autor: Stieg Larsson, era um jornalista e
activista político olhado de soslaio pela extrema-direita sueca e alvo de
várias ameaças de morte feitas por gente incomodada com a posição política que,
enquanto jornalista, assumia publicamente.
Só a meio do terceiro volume da trilogia Millennium decidiu procurar
editor para a obra a que deitara mãos. Quis o destino, porém, que não tenha
assistido ao sucesso internacional em que a mesma haveria de se tornar, com
cerca de 15 milhões de livros vendidos. Larsson morreu repentinamente, vítima
de um colapso cardíaco fulminante (segundo a notícia oficial) ao subir
apressadamente ao 7.º piso do prédio onde estava instalada a redacção da revista
da fundação por si criada, a Expo, através da qual denunciava as poderosas
organizações da extrema-direita do seu país. Tinha 50 anos.
Voltando à prometida ocorrência, nessa primeira noite de leitura do
livro recém- adquirido (coisa para 539 páginas…) logo me apercebi da
singularidade e da força emanante da história ali contada. Assim, num impulso
repentino peguei no telefone e liguei para a livraria, no centro comercial, e
fiz a pergunta que me impacientava: “Têm os 2.º e 3.º volumes da trilogia
Millennium? Sim? Por favor reservem-me um exemplar de cada. Amanhã passo a
buscá-los. Obrigado…”
Como já referi, terminei agora a leitura do último volume da obra. Foram,
no seu todo, 2100 páginas lidas com incontida sofreguidão. Há muito que não
assumia uma tarefa dessa ordem com tamanha absorção, não por culpa minha mas
talvez porque, ao correr do tempo, me fui tornando mais exigente. Não terá sido
por acaso que a Trilogia Millennium me prendeu à leitura com uma espécie de
frenesim que me sabia tão bem. Daí o permitir-me pensar (como antes referi) que
a culpa não é minha. Culpa, se alguém a tem, deve ser atribuída por inteiro a
Stieg Larsson pelo talento enorme que teve a arte e o saber de passar para o
papel.
Se a distracção, como aconteceu comigo, ainda não vos permitiu reparar
na Trilogia Millennium aqui deixo a advertência: não deixem escapar a
oportunidade de a compulsar.
Acreditem que vale a pena…
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