28 de julho de 2012

O que é feito de ti, António!

Luís Farinha


Escrito e publicado em
11.Março.1997
  
Vou contar-lhes a história de António, um homem que conheci há uns três anos no Hospital-Prisão de Caxias, quando ali fui fazer um trabalho jornalístico. É uma história que fala do que pode acontecer a qualquer um de nós, quando o destino se empenha em dar-nos cabo da vida…
  
António esteve emigrado em França durante 23 anos. Com ele, vivendo naquela pátria adoptiva de cerca de um milhão de portugueses, esteve sempre a sua mulher. Lá lhe nasceram filhos e de lá voltou, um dia, cansado de tantos sacrifícios, ruído das imensas saudades da sua terra, tão perto de Lisboa.

Regressado, montou no sítio onde nasceu uma oficina de reparações de automóveis, o seu ofício de sempre, onde continuou a fazer pela vida. Comprou uma casa... e deixou-se ir, ao sabor de um dia-a-dia rotineiro, vendo os filhos arrumarem as suas vidas e esperando a velhice que entretanto ainda vinha longe.

Só que, segundo o seu relato, António e a mulher nunca se deram lá muito bem. Embora gostasse dela, o feitio de ambos, verdadeiramente incompatível, não lhes consentia um relacionamento amigável. Depois do regresso a Portugal a vida em comum de António e da mulher foi piorando progressivamente e, embora a idade já não convidasse a grandes mudanças, certo é que acabaram por se separar, indo cada um para seu lado.

Um dia, já bem perto dos cinquenta, António iniciou uma nova relação quando encontrou uma mulher que também já fora casada. Porém... talvez porque o seu feitio mais não permitia, algum tempo depois a convivência com o seu novo amor também passou a não ser pacífica. Era um "pega e larga" (palavras suas) em que os intervenientes nunca conseguiam entender-se. Mais do que uma vez, a vida em comum esteve prestes a consumar-se para ser, logo depois, uma e outra vez adiada, à espera de melhores dias...

E a vida ia assim andando - ou desandando - para António e para os seus familiares.

Um dia, esgotada de vez a paciência, farto daquela espécie de inferno que ele próprio se encarregara de ajudar a criar, de cabeça perdida, num acto irreflectido António pegou na espingarda caçadeira e disparou sobre a mulher com quem mantinha aquela espécie de relação doentia. Depois, desvairado, dirigiu-se a casa da esposa, de quem se separara havia três anos e voltou a atirar. Em seguida, acabou por fazer um último disparo... contra si próprio. No somatório de consequências a esposa morreu, a outra mulher ficou inutilizada para o resto da vida e António foi parar ao hospital com o lado direito do tronco estraçalhado pelo disparo. Levado a tribunal, depois de socorrido e tratado, foi condenado a 20 anos de prisão por homicídio tentado e consumado.

Um dia destes, durante algum tempo, estive à conversa com António, na cadeia onde cumpre a pena que lhe foi aplicada. Detido há três anos, e agora com 52, o homem que tenho na frente é um ser solitário, calmo e resignado. Fala serenamente e lamenta angustiado aquele dia de loucura de há três anos atrás. Além disso, tem uma mágoa. Os filhos votaram-no ao mais absoluto desprezo e isso, sim, é o que mais lhe dói.

Era isso o que António me dizia quando na sala onde estávamos entrou uma jovem. Parada, olhou à volta procurando alguém. No instante seguinte os seus olhos encontraram os de António e então caminhou até à nossa mesa. Em pé, um em frente do outro, calados, ele expectante, ela com os olhos vidrados tentando reter as lágrimas que teimavam em explodir… depois, num impulso retido a custo, a jovem abriu os braços cingindo o pai comovidamente.

E ali ficaram, olhos nos olhos, calados, deixando que o silêncio evitasse palavras que, quem sabe, talvez trouxessem o desencanto. De resto, para quê as palavras, se o perdão era tão expressivo no rosto da jovem e o remorso tão evidente nos olhos cheios de água de António.

Saí devagar, sem me despedir, deixando-os sós, entregues à sua emoção. Achei melhor não perturbar aquele momento único na vida de António.

Às vezes, ser jornalista não é coisa fácil, acreditem que não…

1 comentário:

  1. Sr farinha que prazer tão bom ler os seus escrito. Um grande abraço. jorge Bruno

    ResponderEliminar