14 de julho de 2012

O direito à diferença

Luís Farinha


Afinal, ao contrário do que diz a canção, todos somos diferentes, poucos somos iguais.

Com a mudança política emergente da revolução de Abril, muitas expressões até aí “proibidas” foram introduzidas no linguajar dos portugueses. De todas elas, porém, a que trouxe verdadeiros acordes de música celestial aos ouvidos de muita gente foi o célebre direito à diferença.

Muitos portugueses, talvez a maioria, pensou então que, de uma vez por todas, ficaria estabelecido o conceito universalista de, como diz a canção do Paulo de Carvalho, somos todos diferentes, todos somos iguais.

Afinal, a realidade está aí para nos lembrar que não é bem assim. Que as cantigas são óptimas para embalar os sonhos.

Frase de muitas leituras, direito à diferença passou a soar, sobretudo, como um hino à liberdade das minorias. Trouxe consigo, na singeleza da sua construção, uma aragem de esperança àqueles grupos de cidadãos que até aí estavam proibidos de existir: associações políticas, religiosas e de cidadania; classes profissionais não agrupadas em sindicatos hipotecados ao Estado Novo; intelectuais não alinhados ou mais contestatários; homens e mulheres de cor e raça diferentes; minorias com outras opções de vida. E assim por diante.

O direito à diferença passou a ser a bandeira dos que sempre ousaram não alinhar com o estabelecido, com o convencional. Transformou-se em pedra de arremesso dos que, até aí, viviam exilados nos seus pequenos guetos. Dos que normalmente pagavam caro - às vezes com a própria vida - a temeridade de ser, pensar e querer de maneira não convencional. O 25 de Abril trouxe consigo, realmente, essa enorme conquista democrática: o direito à diferença. Mas não conseguiu fazê-la acompanhar da necessária mudança das mentalidades retrógradas.

Ainda hoje, e já passaram quase três décadas depois da mudança do regime político, há quem insista em querer preservar as velhas memórias do antigamente, em querer reinventar o sistema de restrições que fazia medrar a classe dos privilegiados. São os que ainda hoje, muitos anos depois da madrugada de Abril, fazem o que podem para perpetuar essa parte do passado que muitos pretendem esquecido, definitivamente, nos recessos do tempo. Os que mascaram das causas mais nobres as intenções inconfessáveis, quando não mesmo as suas pulhices. E para que elas colham, apelam ao populismo e, não raras vezes, à manipulação maquiavélica da opinião pública.

O ofício de jornalista tem-me mostrado isso vezes de mais. É assim que nascem as ditaduras: calando as vozes discordantes; erradicando as minorias; recusando o tão exaltado direito à diferença. Não foi assim que o salazarismo conseguiu garantir a sua permanência no poder durante décadas?

Não foi esse o modus operandi que permitiu a Adolfo Hitler deitar fogo à Europa com o aplauso de milhões e milhões de apaniguados dentro e fora da Alemanha? Por cá, quantas vezes isso já aconteceu depois de Abril? Quantas vezes foi exercida oposição a esse direito fundamental, sublinhado na Constituição da República? Quantos casos se podem contar? Foi a oposição ao direito de recusar o serviço militar por objecção de consciência. A resistência à assimilação dos imigrantes de outras raças na sociedade portuguesa. Os condicionalismos que, durante muito tempo, cercearam o voto dos imigrantes portugueses espalhados pelo mundo. A liberdade religiosa sistematicamente posta em causa a despeito de se tratar de um direito consagrado na Constituição. E, pior que tudo, a condenação implícita ou explícita de pensar e ser diferente, um direito que a Constituição reconhece mas que os grupos de pressão e as instituições com objectivos escusos porfiam à exaustão.

Em cada uma destas situações tem havido sempre quem se mostre vivamente apostado em organizar campanhas de defesa dos interesses da velha e boa “sociedade”, mobilizando meios e organizando oposição cerrada às minorias, sobretudo se estas se regem pelo direito à diferença. Afinal, ao contrário do que diz a canção, todos somos diferentes, poucos somos iguais.

© DR Luís Farinha Texto publicado em: 09/08/2003

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