11 de junho de 2011

O namoro noutros tempos

Luís Farinha


Recordar é, como já vos disse, um dos meus entretenimentos preferidos no tempo que hoje vivo. Não é raro, nesse exercício a que me entrego, quedar-me perplexo com as diferenças profundas que se foram introduzindo no quotidiano desde que, ainda jovem, os apelos da curiosidade me criaram o hábito de querer saber os ‘porquês’ das coisas. Recusando a recorrência ao ‘acaso’ - a fórmula comummente usada e aceite para justificar os acontecimentos menos triviais - cedo me habituei a procurar explicação para as singularidades que o dia-a-dia nos traz.

O episódio que hoje vos trago, ocorrido há mais de 60 anos, se contado aos jovens de hoje corre o risco de ser tido como mais um exagero dos que já passaram a fasquia dos 80. Porém, como prometi no início deste blogue todas as estórias que aqui trago são marcadas pela fidedignidade de quem as viveu ou que delas obteve pleno conhecimento.

A ideia de vos contar este episódio ocorrido da minha juventude surgiu-me quando lia mais um capítulo do livro “Amor e sexo no tempo de Salazar”, da jornalista Isabel Freire. Trata-se dum documento que recomendo vivamente aos que constatam com reserva a dificuldade manifestada pelos mais velhos em perceber como o mundo poude mudar tanto, depois dos anos 50 do século passado.    

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Eram irmãs e muito bonitas. Filhas dum comerciante estabelecido no bairro da Penha de França, em Lisboa, as duas jovens aliavam à sua beleza a compostura própria das criaturas de condição. Teriam a minha idade nesse tempo, à volta dos 18 anos.

Conheci-as por puro acaso em circunstâncias que já não recordo com muita nitidez. Uma delas, era namorada de um amigo meu e, estou hoje convencido, terá sido esse pormenor que propiciou a aproximação. Fosse lá como fosse, a verdade é que acabei por pedir namoro à outra irmã. Cabe aqui lembrar que o meu amigo e a namorada só saíam juntos se e quando acompanhados da mana. Foi numa dessas saídas, ao fim da tarde, para a costumeira voltinha pelo bairro, que tive a ousadia de lhe manifestar a minha admiração. Avesso ao uso de preâmbulos introdutórios em casos que requerem acção prática, avancei com o pedido de namoro.

“Que já tinha reparado em mim quando há algum tempo eu tinha parado para os cumprimentar, que não lhe era de todo indiferente, mas que não aceitaria o pedido de namoro sem autorização dos pais”, foi a resposta que obtive. De qualquer modo, prometeu um encontro para o fim da tarde do dia seguinte para que pudéssemos conhecer-nos melhor. Foi um encontro que me ficou grudado na memória devido ao inusitado da situação: impaciente, à hora marcada lá estava eu de atalaia à porta da jovem, até que a vi surgir no patamar da escada acompanhada de duas senhoras, a mãe e creio que uma tia. E lá fomos, caminhando em estilo de passeio, as duas senhoras à frente e nós atrás, afastados uns três metros das acompanhantes.

Não me recordo do que disse e ouvi durante a passeata pois a confusão em que me sentia afundar impedia-me de conciliar as ideias…

Pouco treinado nas coisas do amor platónico, confesso que fiquei mudo de espanto. Não conseguia evitar de pensar que o nosso namoro ia ser sempre assim, em grupo, para garantir a castidade da minha namorada. A imagem do meu amigo e das suas passeatas com a prometida, com guarda à vista, não me saia da retina.

E agora, o que é que eu faço? Perguntei-me.

As minhas dúvidas dissiparam-se dois ou três dias depois…

Num fim de tarde alguém bateu à porta da casa dos meus pais, onde eu vivia. Aberta a porta, depara-se-nos um senhor de idade avançada, fato clássico de muito bom corte e postura extremamente cuidada. Após ter confirmado que aquela era a morada que procurava, identifica-se como padrinho da jovem a quem me declarara e pede que o receba afim de termos uma breve troca de palavras.

Escorreito no falar, expõe então ao que vai…

“Quem era eu, com quem vivia, a minha ocupação, quem eram os meus pais, o que faziam, a minha escolaridade, os meus projectos de vida e se eu sabia bem quem era a jovem a quem me declarara”. Finalmente: “quais as intenções que me levaram ao pedido de namoro?”

A tudo respondi tão escorreitamente quanto consegui; a minha mãe, essa ficou muda e continuou calada até ao fim… e o meu pai que não chegava!
Finalmente o senhor levantou-se da cadeira, agradeceu tê-lo recebido e retirou-se.

E mais uma vez: “e agora, o que é que eu faço?”

Nunca me tinha visto numa situação igual ou parecida com a que acabara de ter lugar, nem imaginava que ‘aquelas’ coisas funcionavam assim.

Sem que nada tivesse ainda contado à minha mãe acerca daquela história, esta olhou-me, ainda muda, até que lá conseguiu tartamudear: “Mas o que é que se passa? Quem é este senhor? O que é que tu fizeste?”

Expliquei como pude que pedira namoro a uma rapariga que conhecera.

“E afinal, o que é que o senhor queria?”

A resposta veio dois dias depois numa carta entregue pelo carteiro. Era assinada pelo o pai da beldade, o destinatário era eu próprio e o texto trazia a autorização para o namoro, sem esquecer de reiterar o desejo de que eu merecesse a confiança que me era concedida.

Meus caros, o susto foi tão grande, a certeza de que jamais me poderia permitir um gesto de ternura, por pequeno que fosse, que só encontrei uma saída: numa carta que enderecei ao pai da jovem apresentei os meus agradecimentos pela sua aquiescência ao pedido de relacionamento com a sua prendada filha, mas lamentava ter de comunicar que dava por sem efeito o projecto e o pedido de namoro por razões de ordem familiar que me levavam a trocar inesperadamente Lisboa pela cidade do Porto.

Foi uma mentira mal amanhada, eu sei, deselegante e talvez atabalhoada, como alguns de vós, muito justamente, não deixarão de considerar. Uma desculpa desastrada e desastrosa, até porque continuei a viver na Graça, em Lisboa, por mais 30 longos anos.

Era assim nos tempos da minha juventude. Por isso, como referi no princípio, não podem deixar de me espantar muitas das mudanças que o tempo foi introduzindo no nosso dia-a-dia actual. O namoro, que antigamente correspondia ao período de convivência que antecedia o noivado e depois o casamento passou a querer dizer uma coisa inteiramente diferente. Namoro, hoje, equivale ao que há 50 ou mais anos era chamado de concubinato, mancebia, amiganço. Creio até que essa coisa de pedir namoro desapareceu dos hábitos dos e das jovens. Pois se as moças conhecidas, mormente as que fazem as delícias da imprensa cor-de-rosa, anunciam na imprensa, com toda a naturalidade, que estão de “namoro” pegado com fulano, ou que acabaram o “namoro” com beltrano, pormenorizando que deixaram de viver em comum e considerando-se disponíveis para um novo amor…

“No meio é que está a virtude” era um ditado muito em voga nos tempos de antigamente. ‘Virtude’ queria, nesse adágio popular, significar o que está bem, o que é aceitável, o que pode ser considerado como razoável por uns e outros, por diferentes que sejam as suas convicções. Contudo, no que respeita aos usos e costumes que marcam o correr das gerações, parece que a virtude deixou de funcionar como a baliza que, nos tempos idos, estabelecia os parâmetros do comportamento racional e o funcionamento da sociedade em que nos é dado viver.

Entretanto, cautela!

Não quero significar que gostaria de desenterrar esqueletos. Bem longe de mim a ideia de me pôr à espera, onde a terra termina e o mar começa, na esperança que do nevoeiro surjam os fantasmas de outrora. Ora tendo-me a vida ensinado, entre outras coisas, que nada é imutável, que os conceitos mudam à velocidade da luz e que é inimaginável alguém pretender que o mundo deixe de girar, só muito mais adiante fui capaz de começar a aceitar como inevitáveis as mudanças que o dia-a-dia nos traz. Contudo, talvez hoje já seja capaz de compreender com relativa facilidade a carta que o pai da jovem lá do meu bairro me escreveu e a visita que me fez o seu amável padrinho.

Uma coisa é certa: peço-vos desculpa mas não consigo deixar de sentir saudades do tempo em que o namoro, tal como o conheci, significava uma coisa diferente daquela a que hoje a mesma palavra se refere.

Coisas de velho, enfim…       


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