5 de maio de 2011

A senhora do solar

Luís Farinha

 Todas as noites, ao princípio da madrugada, o telefone tocava. Lá longe, no Norte, em Cabanas de Viriato, sozinha no seu velho solar, a senhora tinha apenas o rádio a acompanhá-la. Como tantas vezes acontece (ou acontecia, nos tempos em que a televisão era ainda uma vaga promessa para os portugueses), havia sempre quem fizesse dos homens e mulheres da telefonia objecto das suas fantasias. Daí, as cartas que recebíamos, os telefonemas, e não só.
   E a senhora de Cabanas de Viriato (cujo nome não vem a propósito), tinha criado e desenvolvido uma acesa admiração por aquela voz que, de Lisboa, todas as noites lhe adoçava a solidão.
   O pretexto dos telefonemas, esse era sempre o mesmo: pedir um disco da sua preferência. A conversa, porém, extravasava sempre desse pedido singelo.
   A partir de certa altura comecei a receber cartas longas, muito longas, em que me falava do seu exílio voluntário nas altas terras da Beira, para ficar longe desta Lisboa que, dava ela a entender, lhe tinha sido madrasta.
   Tanto a sua voz, como a forma como se exprimia ao telefone (e mais tarde por escrito) deixava adivinhar o nível elevado da sua condição. Na verdade, falava e escrevia como alguém que tivera uma educação acima da mediania. Não pactuava com a vulgaridade, e o que dizia era profundo mas sem qualquer assomo ou cedência ao tão vulgar "namoro" de circunstância. De resto, se alguma admiração havia, como era notório, nunca a mesma passou da fase platónica, e a confirmá-lo está o facto de eu nunca ter conhecido pessoalmente a minha ouvinte de Cabanas de Viriato.
   Ela sim, conheceu-me, em circunstâncias que não vêm a propósito nem são importantes para a estória que vos conto.
   Uma noite, como se tornara habitual, a chamada lá veio. Estávamos no Inverno, um daqueles Invernos rigorosos de antigamente, quando as estações do ano, em Portugal, eram coisa para se levar a sério. Fazia um frio de morrer, mais ainda lá para as serrarias da Beira Alta, onde a aspereza do clima é que marcava o ritmo do dia-a-dia. Apesar dos mais de 40 anos passados, ainda me recordo de a ouvir comentar o frio que fazia e do aquecedor eléctrico que tinha junto à cama, para se aquecer. Lembro-me também de me falar da serviçal que diariamente lá ia para a lida caseira e que, logo o Sol se punha, regressava à sua própria casa e à família, deixando-a sozinha, até ao dia seguinte.
   Como de costume, também nessa noite depois de alguns minutos de conversa despedimo-nos afavelmente e desligámos, não sem que antes lhe recomendasse cuidado com o aquecedor eléctrico.

 No dia seguinte, pela manhã, cumprindo um ritual que ainda hoje faz parte do meu quotidiano, abri o jornal para me inteirar do pouco que nesse tempo chegava ao conhecimento público. Numa página interior algo chamou a minha atenção: a foto de uma casa calcinada pelas chamas, encimada por um título em caixa alta, mostrava o que desde logo me fez estremecer:

CHAMAS CONSOMEM SOLAR 
EM CABANAS DE VIRIATO
PROPRIETÁRIA MORREU NO INCÊNDIO

 No seu desenvolvimento, a notícia explicava que o fogo devia ter sido provocado pelo aquecedor que fora encontrado junto à cama.

 Um par de meses depois recebi na rádio a visita de um homem idoso, vestido com esmero. Identificando-se com familiar da minha ouvinte longínqua pretendia saber que tipo de relação tinha eu mantido com a sua parente chegada. Expliquei-lhe que a não conhecera pessoalmente, que a “relação” não passara de um caso igual a tantos outros que, nesses tempos longínquos, eram vulgares entre os locutores e os seus ouvintes. Talvez uma forma encontrada para ajudar a mitigar a solidão dos que viviam sós, acrescentei.  

 Aquele relacionamento com a minha desconhecida admiradora terminou assim, abruptamente, dele restando apenas uma memória esparsa que de quando em quando me visita fugazmente, sempre que, de relance, dou uma olhadela ao passado que deixei para trás.

Como hoje...

Sem comentários:

Enviar um comentário