10 de maio de 2011

Os “retornados”… lembram-se?

(Quarenta anos depois)

Luís Farinha

Foi há cerca de quatro décadas que ocorreu o regresso do meio milhão de portugueses, homens, mulheres e crianças, que tinham procurado em África o que aqui lhes tinha sido negado: uma forma de, através do trabalho, conquistarem uma vida digna.

Mais de quinhentas mil pessoas que, de repente, se viram na contingência de abandonar às pressas as suas casas, os seus bens, os seus negócios, as amizades, até alguns familiares que entretanto optaram por ficar, enfim... meio milhão de seres humanos que, de um dia para o outro se viram despojados de tudo aquilo que lhes havia demorado muitos anos a construir. Pessoas que apressadamente regressaram às suas terras de origem, embora entre elas viessem também muitos que, entretanto, já tinham nascido naquelas paragens africanas.

O retorno desse grosso contingente constitui hoje, sem dúvida, um capítulo sombrio da história portuguesa. Um pedaço de história que põe a nu as fragilidades políticas do pós 25 de Abril, deixando às claras a falta de vocação política dos homens que então chamaram a si a resolução dos grande problemas nacionais.

Ainda hoje, e já lá vão quatro décadas, não lembrem aos deslocados de África as condições em que se viram obrigados a deixar os imensos territórios que entretanto aprenderam a amar, e a recepção que aqui lhes foi feita quando, de mãos a abanar, saíram dos aviões e navios que os trouxeram.

Muitos, durante anos habituados a viver num ambiente mais aberto e com um certo nível de vida viram-se constrangidos a procurar familiares e amigos no interior de Portugal continental, pessoas que os ajudassem a ultrapassar a miséria moral e física em que se tinham visto colocados. Outros, também aos milhares, sem raízes familiares a que recorrer, foram metidos em hotéis, pensões de recurso e até em parques de campismo, à espera de melhores dias. 

Enfim... foi um desnorteio sem fim a que os políticos de então não conseguiam dar resposta adequada e que durou alguns anos a debelar.

A tudo isto - convém lembrar - acrescente-se a fauna de oportunistas que, como abutres, viram nos planos de emergência constituídos às pressas pelas entidades governamentais  (para apoiarem a instalação dos retornados)  uma forma de enriquecer à custa da exploração vergonhosa destes muitos milhares de homens e mulheres desenraizados à força. Foram transformadas em pensões muitas instalações adaptadas rudimentarmente onde tudo faltava, inclusive condições mínimas de higiene. Tudo isso na mira do lucro fácil proveniente dos subsídios (IARN) para o efeito canalizados pelo governo. Completado o plano de evacuação, e numa espécie de selecção natural, assistiu-se depois a um fenómeno muito curioso: uma vez na metrópole, como então se dizia, os deslocados de África dividiram-se em dois grandes grupos: de um lado os que adoptaram e transformaram o Rossio numa espécie de “muro das lamentações”, local onde aos milhares se encontravam diariamente para falar da sua infelicidade, contando (e, quantas vezes acrescentando) o que tinham deixado em África, ao mesmo tempo que criticavam a falta de apoio a que se sentiam com direito. Do outro, os que - uma vez instalados, às vezes muito mal - decidiram arregaçar as mangas e começar tudo do princípio, na base do trabalho duro. Bem perto de nós, onde quer que vivamos, há muitos exemplos dessa gente abnegada que cedo compreendeu que a sua vida tinha de ser refeita a partir da estaca zero. Cerrando os dentes de raiva, famílias inteiras atiraram-se ao trabalho e, mostrando a capacidade dos portugueses para se adaptarem às circunstâncias mais adversas, depressa deram mostras da massa de que eram feitos.

Já passaram muitos anos, mas ainda agora eles podem ser encontrados por aí, à frente dos pequenos negócios que montaram, nos empregos que arranjaram, no trabalho duro que descobriram. Outra vez realizados, fazem a sua vida, continuando a usar uma forma de ser e estar que a distância de milhares de quilómetros não conseguiu diluir: felizes, gostam de conviver entre si, desde que não lhes falem da “exemplar” descolonização com que os políticos diletantes desse período inesquecível deram cabo das suas vidas.

O regresso deste meio milhão de homens e mulheres escorraçados das terras longínquas a que um dia haviam aportado em busca de melhor vida foi uma das páginas mais dramáticas da diáspora lusitana. Foi uma odisseia homérica que os jovens terão hoje dificuldade em compreender. Não foi uma página brilhante da nossa história, um episódio que nos honre enquanto Nação, mas pode servir de exemplo na actual conjuntura político-social em que mais uma vez é dada prova da vocação dos portugueses para improvisarem soluções que não resolvem mas adiam os problemas sérios que ciclicamente lhes são postos. Não estávamos preparados há 40 anos para enfrentar a calamidade que a descolonização “exemplar” desencadeou e de novo somos apanhados agora com as ‘calças na mão’ quando a catástrofe económico-social se abate sobre nós. 

Afinal onde estão os ‘cérebros’ que, enfatuados, arrotam postas de pescada? Por onde param os vendedores da banha de cobra que tudo cura, desde a dor de dentes à queda do cabelo, à dor nas costas e aos calos dos dedos dos pés? Procurem-nos, alguns continuam em cima dum palanque, microfone na mão, a debitar promessas. Outros, já cansados de tanto governar, vivem na morna quietude dos gabinetes para si preparados nas muitas empresas de enriquecimento fácil e rápido que há por aí a granel.

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