16 de junho de 2012

Os vampiros

Luís Farinha



“Se há coisa que esta crise prova é que Marx não tinha razão nenhuma. Marx profetizou um "capitalismo" onde haveria um número cada vez maior de pobres, que seriam também cada vez mais pobres, enquanto o capital se concentraria nas mãos de um pequeno número de ricos cada vez mais ricos. Ora, como Popper lembrava à exaustão, não só o capitalismo retirou da pobreza milhões e milhões de "proletários", que hoje vivem comparativamente melhor do que alguma vez na história e vivem seguramente melhor do que em qualquer regime socialista, como difundiu a propriedade a uma escala nunca antes vista. A crise que vivemos desmente Marx no sentido mais exacto porque nasce da expectativa de sermos todos proprietários, mesmo que à custa do crédito.”

Quando acabei de ler este pedaço da prosa de Pedro Picoito no blogue Cachimbo de Magritte, dado à estampa em 04.10.08, fiquei a reflectir sobre a capacidade que alguns possuem de, mesmo à distância, serem capazes de captar os sinais avisadores de calamidades que muitos outros não conseguem sequer vislumbrar. Mais de três anos passaram sobre o escrito do historiador e, se para ele os equívocos eram já evidentes, o tempo que passou encarregou-se de confirmar quão vãs eram (e continuam a ser) as efabulações dos que se atrevem a conjecturar sobre os amanhãs que estão para vir. Para que as profecias dos mais sábios fossem acatadas como inquestionáveis seria necessário que o mundo fosse uma coisa estável e mais equilibrado o discernimento dos seus ocupantes transitórios relativamente à sociedade em que estão inseridos. Não é assim, porém: o mundo está em permanente mudança e os seus habitantes primam pela inconstância. Antes, o homem distinguia-se pela honra que emanava das suas acções públicas e privadas, hoje o seu paradigma é medido por uma coisa a que chamam sucesso, ainda que este seja resultante de práticas nada edificantes. Na actualidade Portugal é exemplo deste raciocínio. Olhemos as figuras salientes que ultimamente enxameiam as colunas dos media, contabilizemos os exemplos das que têm vindo a tornar-se notícia pelas piores razões e retiremos as ilações devidas. O balanço é confrangedor, chega mesmo a meter medo porque mostra até onde pode chegar a fome de importância que grassa na sociedade actual. Como a realidade bem mostra, a busca aloucada do enriquecimento fácil e a ganância desmedida são os factores que norteiam a busca do sucesso pessoal. Daí o culto da opulência, presente na pose sobranceira dos novos-ricos e, por associação, dos que mesmo vivendo de crédito se babam deleitados caricaturando a postura arrogante dos que teimam em querer passar a imagem de seres à parte, não confundíveis com os vulgares cidadãos sem pedigree.       
   
Nos últimos tempos Portugal tem vindo a mostrar ao mundo a endémica falta de talento dos seus políticos para gerir as coisas da governação. Ao contrário do que os mais ingénuos ainda possam pensar essa inabilidade não é uma coisa de agora. Como a história se encarrega de demonstrar trata-se de um estigma que vem de longe, dum tempo que já foi.

Nasci num ano de crise profunda. Mil novecentos e vinte e nove foi, como se sabe, um ano catastrófico para a economia e finança mundial. A Grande Depressão, designação com que essa calamidade ficou inscrita na história, embora tivesse origem no crash da bolsa de Nova Iorque (registado em Outubro desse ano) de imediato se propagou ao exterior, levando inúmeros países à pobreza mais rasteira. Portugal não foi excepção: a economia lusa, débil por natureza, viu-se de repente envolvida pelos fumos do descalabro geral mas, dando crédito ao velho adágio segundo o qual “há males que vêm por bem”, foi graças talvez ao isolamento do país no contexto internacional que os efeitos da Grande Depressão não foram aqui sentidos como noutros pontos do globo.    

A situação recente é, contudo, bem diferente. Sem ter ainda encontrado o destino prometido pela revolução de Abril, nos últimos 38 anos Portugal tem vindo a debater-se com uma sucessão de situações políco-económicas intrincadas criadas artificialmente por uma cadeia de sinistros personagens que, por artes e manhas, se vão infiltrando nos centros de decisão estratégicos afim de, à primeira oportunidade, conseguirem criar - para si e (ou) para os seus grupos de influência - as condições propícias ao enriquecimento fácil ou à engorda das fortunas recém adquiridas, como se de magia se tratasse. Tal acção, normalmente muito frutuosa, aliada à notória falta de talento dos que para “governar” se vão voluntariando, conduziu os portugueses à espécie de beco sem saída em que se encontram e do qual não vão conseguir sair nos anos que a vista alcança. A pobreza é cada vez mais profunda e tanto quanto é fácil depreender, essa precariedade veio para ficar. Já era assim no ano em que abri os olhos pela primeira vez (1929), e continua a ser, agora, 83 anos depois, quando se aproxima a hora de os fechar pela vez derradeira.

Nasci pobre e nessa condição vivi até à idade adulta. Depois, aos poucos, consegui afirmar-me no plano profissional e, sempre convencido que o trabalho seria a única coisa que me faria melhorar os amanhãs que viriam, cheguei à temeridade de acumular dois empregos a tempo inteiro durante quase duas décadas. O excesso impediu-me, porém, de continuar. Lembro ainda aquele fim de tarde em que um médico amigo me impôs a alternativa: “acabas com um dos teus empregos ou recuso-me a continuar a atender-te no meu consultório, agora escolhe!”. Depois de lhe assegurar que iria seguir o seu conselho veio ainda com outra condição: “Então, para já, sem adiamentos, quero-te de férias pela primeira vez durante os próximos 15 dias”. Contava eu, então, 40 anos de vida e quase 30 de labor contínuo…
A convicção de que só o trabalho, se conjugado com uma vida sem gastos extravagantes me consentiria olhar o futuro com alguma tranquilidade fez com que adoptasse essa condição fazendo dela a luz que norteou o caminho que guiou a minha vida inteira. Só agora, muito perto do fim, é que se me coloca algum cepticismo quanto ao futuro dos filhos dos nossos filhos, porque a acção equívoca dos portentos políticos que se têm sucedido nas cadeiras do poder para mais não dá. Só agora, quando o trabalho escasseia e o desemprego cresce numa proporção que mete medo, quando o país desceu à necessidade de ter de pedir ajuda externa para evitar o descalabro colectivo é que me dou conta de que as sucessivas gerações desses políticos de faz-de-conta se têm limitado a percorrer o caminho mais curto ao encontro do protagonismo que, mais adiante, lhes trará a riqueza que tanto anseiam. Tal equação pode ser confirmada pelas inúmeras fortunas construídas a partir do conceito de que o que está a dar é ser ex-ministro de qualquer coisa. Mandando a ética às urtigas, enquanto permanecem nos cadeirões da governança os políticos de ocasião vão tecendo as suas urdiduras de modo a futurar posições de privilégio nas empresas de alto gabarito que de algum modo se tornaram devedoras de favores entretanto recebidos. Depois é um nunca acabar de benesses que ficam muito para além da capacidade de compreensão dos pobres coitados para quem o cúmulo da felicidade consiste na satisfação das necessidades básicas familiares. As últimas décadas têm sido férteis em exemplos chocantes.

Tal como acontece comigo, também vocês – os cidadãos angustiados – vão chegar ao fim da vida sem entender que raio de papel lhes foi atribuído nesta farsa burlesca obrada pela lustrosa classe dos vampiros.    

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