24 de fevereiro de 2012

Óh p’ra mim há 80 anos!


Luís Farinha


“Mesmo com as casas de madeira, com a lama dos caminhos... quando acordei fiquei com saudade desse tempo das brincadeiras sem parque infantil”


De repente, sem aviso, o subconsciente prega-nos a partida.

Como é que episódios praticamente apagados da memória, inrropem, sem aviso, pela calada da noite, como a provar-nos que o que deixamos para trás acaba sempre por nos apanhar, quer queiramos ou não? Visões, sons, cheiros, pessoas, sentimentos... coisas que nos levam de volta aos tempos que já foram. Umas vezes, é um sonho bonito, e então, ficamos felizes e gratos com a viagem ao passado que ele nos levou a revisitar. Outras vezes são memórias que tínhamos como esquecidas mas que surgem do nada, inopinadamente, reabrindo feridas que pensávamos já saradas.

O sonho desta noite pertence ao primeiro grupo. Foi um sonho feliz!

Eu conto como foi...

Não escondo de ninguém, nem de resto vejo razão para o fazer, que a minha primeira infância foi passada num aglomerado de habitações mal amanhadas, na sua maioria construídas de madeira, uma porta, uma pequena janela e o interior composto de duas divisões normalmente separadas por uma cortina. Era numa quinta, à Penha de França, nesta Lisboa que hoje, vaidosa, abjura o passado. Ali, na Quinta da Bandeira, as ruas, ou antes, os caminhos eram de terra batida. Como referência, a quinta situava-se exactamente onde hoje se ergue a Escola Nuno Gonçalves, na avenida General Roçadas, artéria que ainda não existia nos idos da minha infância.

Para um garoto de 2, 3, 6 anos, viver nessas condições não seria exactamente razão de deleite. Mas nesses tempos, quando Lisboa acabava ali bem perto, no Areeiro, a maior parte das casas “pobres” não tinha água canalizada, nem saneamento básico e ainda se alumiava a petróleo, o que fazia com que viver num lar de madeira, como o meu, não fosse propriamente degradante porque era assim que vivia a grande maioria dos portugueses pobres, acrescendo ainda a circunstância de aquela ser a única habitação de que eu me lembrava. Daí não sentir falta do que não conhecia.

Enfim, como referi aquele era o modus vivendi da grossa fatia da população que habitava os chamados bairros tradicionais da capital portuguesa. Pelo menos daqueles que viviam dos seus ofícios, os operários. Há 80 e mais anos abundavam os artífices: carpinteiros, marceneiros, pedreiros, pintores, sapateiros, polidores, serralheiros, alfaiates, ourives, mecânicos, relojoeiros, latoeiros e um nunca acabar de tarefeiros indeterminados, todos eles a ganhar uma ninharia. O meu pai, ‘contramestre’ num pequeno fabricante de calçado em Lisboa, auferia 20 escudos diários, pagos à semana de seis dias, num patrão que o admitira há 18 anos atrás. Não havia, então o direito a férias nem subsídios disto e daquilo, inclusive o de doença – coisa que, de resto, o operariado aceitava sem protestar por ainda não ter adquirido consciência do que, muito depois, começou a entender-se comodireitos básicos dos trabalhadores. Não tinham ainda sido inventados os contratos de trabalho: os patrões admitiam os trabalhadores em condições que eles próprios estabeleciam e despediam-nos quando lhes dava na real gana, sem qualquer justificação laboral e sem indemnização. Em compensação, é também verdade que se arranjava emprego com mais facilidade, do mesmo modo que era muito fácil admitir quem realmente queria trabalhar. Os operários distinguiam-se pelos seus atributos profissionais, sendo vulgar designarem por “arte” o ofício que aprenderam. Só o seu bom desempenho profissional e o desábito de reivindicar era, nesse tempo, garantia de alguma estabilidade nos lugares que ocupavam.     

Uma coisa é (ou são) os nossos anseios ocultos, outra, bem diferente, é a realidade social deste país, realidade que não era boa nos meus tempos de garoto, e que continua a ser má, agora que já sou velho. Só que oitenta anos depois dessa época distante, aqueles que hoje se designam detrabalhadores continuam a ser pobres, embora, em boa verdade, eu sinta dificuldade em entender como pobre uma família que se queixa de que o que ganha não chega para pagar as prestações da casa, do automóvel, das férias, dos electrodomésticos e, ao mesmo tempo, compra os ténis, as roupas e utensílios escolares de marca, os telemóveis e as demais bugigangas electrónicas que as crianças da família exigem e a que têm direito.    

Voltando, porém, ao meu sonho, ele veio trazer-me à memória que, mesmo nas condições minguadas em que vivi a minha primeira infância, há vivências dessa época que me são muito gratas. A personagem do meu sonho foi a “avó”, uma velhota que morava na casa ao lado da nossa e a quem, toda a gente, com muito carinho, tratava com essa designação familiar.

A “avó”, do alto do seu saber feito de muita vida vivida, era quem diagnosticava e tratava as maleitas da criançada da quinta. Levantava as “espinhelas caídas”; “tirava” o Sol que atacava a miudagem que vivia à mercê dos caprichos do tempo... enfim, a “avó” era o SAP que não havia nesse tempo (hoje também já não há…), o médico que custava o que não podíamos pagar, o padre que não frequentávamos; era a amiga e conselheira dos casais desavindos, a confidente sempre disponível para toda a gente que a procurava.
Foi um sonho bonito, o da noite passada...

Voltei a vê-la, à simpática velhota, com os seus cabelos brancos, com as rugas bem vincadas que a idade lhe trouxera, com o seu sorriso bondoso. Senti-lhe a mão macia com que me afagava a face enquanto me “tirava” o Sol, com um copo de água, virado de borco sobre uma toalha, em cima da minha cabeça. Quase senti o sabor da colher de mel com que rematava cada consulta dada.

Mesmo com a casa de madeira, com a lama dos caminhos... quando acordei fiquei com saudade desse tempo das brincadeiras sem parque infantil. Das espigas altas onde nos perdíamos, das “azedas” que chupávamos, dos figos que roubávamos dos quintais dos vizinhos.

Que saudade...

Quem me procurasse na noite passada, não me encontrava, com certeza. Tinha partido de viagem aos tempos da minha infância. Tinha ido visitar a “avó”, uma figura que, só agora me dei conta, continua bem viva no fundo das minhas recordações.

Sem comentários:

Enviar um comentário