16 de agosto de 2011

No corredor da morte

Luís Farinha

Hospital de Santa Marta
Serviço 3 – Sala 1 (Angiologia)



Foi aí, nesse serviço hospitalar, degradante na época, que há alguns anos, em 85 do século passado, para ser mais exacto, durante dois longos meses assisti aos episódios mais dramáticos e traumatizantes de toda a minha vida. Dois meses em que me dei conta de até onde pode chegar a degradação do ser humano quando a infelicidade se obstina em reduzi-lo a nada, a coisa nenhuma.
  
Foi nesses dois meses, longos, muito longos, no cenário da mais deprimente miséria física, a minha e a dos meus companheiros, que aprendi a soletrar a palavra solidariedade.
  
Nesses infindáveis 60 dias vi entrar e sair muita gente do Serviço 3, de Santa Marta. Uns, que como eu conseguiram ultrapassar as suas crises; outros, que acabaram ali os seus dias no meio do maior sofrimento, alguns bem em frente dos meus olhos.

O Serviço 3, de Angiologia, no Hospital de Santa Marta, é (era) onde se tratam os problemas vasculares. É lá que vão parar os casos desesperados de pessoas, principalmente do sexo masculino, que se deixaram apanhar nas malhas da arteriosclerose, da hipertensão arterial e de outras doenças do mesmo ramo. Foi ali, ao Serviço 3, de Angiologia, que eu vi chegar alguns homens com a altura normal de 1,70m e saírem de lá com apenas 80 centímetros. Sem pernas, amputadas em resultado da associação infeliz dos problemas vasculares com a diabetes.
  
Vi seres humanos acabarem reduzidos à condição de semi-homens. Ouvi, dias e noites a fio, os gritos mais angustiantes que a dor física pode provocar.
  
Sem poder valer-lhes, impotente face ao seu sofrimento, vi homens chorarem, desesperados, com vergonha de enfrentarem o mundo. Homens reduzidos a tocos disformes depois de passarem pela mesa de operações.
  
Escutei pedidos aloucados de uma morte rápida, morte que os livrasse do sofrimento que consumia os seus corpos martirizados. E vi também a força do vício que tudo subjuga, até à irracionalidade. Até ao teimoso alheamento dos danos irreparáveis que o tabaco provoca em quem já vive por um fio...

Comigo, no Serviço 3, estava internado um homem cuja história nunca poderei esquecer. Há alguns meses tinha sido amputado de uma das pernas em resultado da tal associação sinistra: má circulação-diabetes. Quando o conheci, no Serviço 3, tinha ele voltado ali porque a outra perna começara a manifestar sinais evidentes da progressão da doença. Recordo-me que havia naquele serviço hospitalar uma regra a que ninguém podia desobedecer: todos estávamos rigorosamente proibidos de fumar!
  
Compreende-se porquê...

É que o cigarro e a circulação sanguínea não casam lá muito bem. Entre ambos, o antagonismo vive sempre latente.
  
Pois o tal sujeito, enfermeiro de profissão, por isso mesmo perfeitamente consciente dos riscos que corria, nunca deixava de dar umas fumaças sempre que para isso arranjava oportunidade. Isto, apesar das advertências que todos lhe fazíamos para que parasse de fumar, e de os médicos o avisarem constantemente até onde o podia levar a sua teimosia.
  
Um dia qualquer, estava eu ansioso para saber o resultado de mais uma intervenção cirúrgica a que o tal colega de infortúnio fora submetido, quando verifiquei, à saída da sala de operações, que também ele tinha diminuído de altura: a outra perna tinha, finalmente, seguido o caminho da primeira.
  
Segundo mais tarde um médico me contou, essa situação podia ter sido evitada se, atempadamente, ele tivesse parado de fumar.
  
Nos dias que se seguiram, o semi-homem em que ele próprio se transformara não parou de chorar, lamentando a sua desgraça, incapaz de enfrentar o mundo.

Lembrei-me disto, agora, porque numa conversa entre amigos foi recordada a figura desse grande desportista, guarda-redes do Benfica e muitas vezes internacional, o Costa Pereira, ele próprio um dos que não resistiu por muito tempo após a sua passagem pelo Serviço 3, de Angiologia, do Hospital de Santa Marta.
  
Foi a recordação da sua e minha permanência nesse lugar de morte que me trouxe dos recessos do tempo memórias antigas que supunha já esquecidas, definitivamente.

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