26 de agosto de 2013

O português que se fala


Luís Farinha

 

 

     Sobrevoar Lisboa, de noite, no regresso de mais uma viagem de trabalho ou de prazer, é um gozo que se renova em cada vez que acontece. Pelo menos é o que eu costumo sentir. A última foi em 20 de Maio passado, no regresso de Lyon (França). Chovia quando embarquei, lá, e continuava a chover quando vi aproximarem-se as luzes da cidade de Lisboa. Num bom voo, como quase sempre, tentei cobrir aquele espaço de duas horas assistindo aos esforços dos assistentes de bordo (antigos comissários) a tentarem vender alguns artigos de discutível interesse e os jogos da raspadinha que, para minha surpresa, têm agora tanta saída lá em cima, entre as nuvens, como cá em baixo, nos cafés cá do meu bairro.

 

     Aterragem perfeita apesar da chuva persistente. Duas assistentes  portuguesas (antigas hospedeiras de bordo), na cabine junto à escada da saída, na cauda do avião, acompanhavam a operação de desembarque. Uma delas, armada de microfone, apresentava os habituais agradecimentos da companhia transportadora, à mistura com os avisos da praxe na hora do adeus. E foi aí que a coisa aconteceu. “Continua a chover, por favor tenham cuidado com os degraus, apõem-se nos corrimões”. Surpreendidas, ficaram a olhar o senhor que, na passagem, lhes recomendou a meia voz: “meninas, não se diz corrimões mas sim corrimãos” e iniciei a descida sem olhar para trás.

 

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     Não sendo um 'crítico' no sentido em que, nos media, isso é entendido, não resisto à trazer aqui dois reparos que me causam uma espécie de urticária. Por isso aí vai...

 

Os 'Entões' estão na moda?

 

     Ouve-se todos os dias nas rádios e nos vários canais de televisão. Nestes, a moda pegou para valer. De microfone na mão, não há repórter que se preze que não avie meia dúzia de sonoros 'entões' durante uma intervenção de um ou dois minutos. É um regalo! Quase sempre a despropósito, o 'entões' saltitam de frase em frase salpicando a verborreia para que a notícia, o acontecimento, tenha mais emoção. Para que o público caia em êxtase perante tanto dinamismo jornalístico.

 

 

Exemplos ficcionados:

"É esperada hoje, no Porto, a chegada da rainha da Holanda afim de acompanhar a inauguração do 'Porto, Capital da Cultura'. Espera-se então que a rainha chegue por volta das 17 horas".

  

Ou:

 

Hoje, às quatro e meia da tarde, um grave acidente rodoviário pôs termo à vida de dois jovens de 23 e 29 anos. Uma viatura de alta cilindrada despistou-se então na recta do Dafundo, na Marginal, indo embater, de frente, numa camioneta de carga que seguia na direcção de Algés. Do brutal acidente resultou então a morte dos dois jovens que seguiam no BMW havendo ainda que lamentar ferimentos graves no condutor da camioneta. Quando os bombeiros chegaram ao local, poucos minutos após o acidente, já nada puderam fazer em favor dos dois jovens, limitando-se então a transportar para o hospital o motorista ferido.                

 

Ou:

 

"No Martim Moniz, em Lisboa, desabou um prédio que há muito ameaçava ruína.

Felizmente não se registaram então vitimas entre os moradores.

Foi ontem que a ocorrência teve então lugar numa das zonas mais tradicionais da Capital".

 

     Além de inaceitáveis por serem utilizados fora de contexto, estes "entões..." entram na lista daqueles lugares-comuns que os mestres designam por "bengalas" - expressões utilizadas apenas com o intuito de estabelecer a ligação 'começo, meio e fim' das frases que procuram a todo o custo adicionar emoção ao acontecimento que está a decorrer.

     É feio, inestético e confirma apenas a pobreza de recursos linguísticos do noticiarista.

     Embora muito menos frequente, o 'então' despropositado é já usado também por um ou dois 'pivots' televisivos. Daqui a teoria de se ter tornado moda a que alguns profissionais não conseguiram resistir. A confirmar-se essa eventualidade, torna-se ainda mais grave o que já por si me parece lamentável.         

 

Modismos (1)

 

     Ainda no âmbito da comunicação social falada houve tempos em que se tornou moda acrescentar a consoante "s" aos verbos terminados em "r". Assim, ouvia-se pronunciar frequentemente: "morrer´s" em vez de morrer; "viver´s" em vez de viver; "fazer´s" em vez de fazer; "ir´s" em vez de ir; "acabar´s" em vez de acabar; "sorrir's" em vez de sorrir; "escapar's" em vez de escapar; "escrever's" em vez de escrever; "falar´s" em vez de falar... Na prática, esta moda proporcionava frases com imensa piada, como: "Fique para ver's, é já a seguir's".

 

     A primeira pessoa a quem ouvi usar esta preciosidade, um novel apresentador que eu nunca vira antes, dava-se ares de grande vedeta. Profusa gesticulação, transbordante desembaraço, verbosidade fluida e uma forma estranha de a pronunciar. A incontida presunção de que dava mostras não demorou a arregimentar um sem número de seguidores. Rapidamente, aquele falar estranho transformou-se em moda irresistível, principalmente entre os recém-chegados à comunicação social falada. Hoje, muitos anos passados, a experiência acabaria por levar a melhor. Ele aí continua, na televisão, agora contido mas sempre fluente na palavra fácil, escorreita e despretensiosa. Um  apresentador aceitável.

 

Infelizmente, registo a continuidade desse modismo, que acabou por passar à história, na figura de um jornalista-pivot num dos canais generalistas. E sinto pena   que a sua sobriedade profissional não se estenda ao hábito malsonante dos 'esses' a terminarem os verbos acabados em 'erre'. A menos que tal anormalidade se deva a um defeito contraído na estrutura dentária, na língua ou no aparelho fonador. Se tal for o caso aqui deixo as minhas desculpas, consciente de que no melhor pano cai a nódoa.

 

Nota final (2)

 

     Creio que vale a pena explicar por que decidi trazer aqui estes dois reparos.

 

     É incontestável que o mundo está em constante mudança, porém nem sempre no bom sentido. Será por isso que sinto uma confessada relutância em aceitar o que se confunda com o mau gosto. A falta de brio profissional é, igualmente, um dos pecados que sempre me causaram arrepios, evitando por isso o contágio degradante que tal prática implica. Como jornalista de longo curso, vi - e continuo a observar - muitos sinais de degradação de uma profissão que em tempos idos criou grandes figuras mercê do zelo cuidado do seu desempenho. 

 

 

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