5 de dezembro de 2012

E depois, como será?

Luís Farinha


A minha mulher não pára de me acruzinar os ouvidos apodando-me de ‘protestante compulsivo’. Cansado dos seus remoques já não sei o que mais fazer para a convencer que protestar é um direito que me assiste. Que protestar é, além disso, um exercício a que a minha condição de cidadão cônscio me obriga.

Que “não vale a pena”, diz ela…

E insiste… “Eles estão-se borrifando para os teus direitos. Então tu não vês a indiferença…”

Realmente vejo e não gosto. Não gosto, sobretudo, que os meus escassos recursos tenham sido postos à mercê da máquina trituradora do senhor Gaspar, um técnico de contas que, baseado em complicados diagramas teóricos, permite-se dispor da minha carteira ao jeito dos “carteiros” da carreira 28 dos amarelos de Lisboa. Esta é, reconheço tardiamente, uma espécie de castigo merecido para quem, como eu, acreditando em balelas pôs a cruzinha no quadrado errado no boletim de voto.

Eu sei… pronto! Eu sei que agora já é tarde para me arrepender.

Ingenuamente, com o meu voto ajudei a criar uma situação que acabou por se virar contra mim ao ponto de pôr em causa a tranquilidade e a paz até aqui reinantes lá em casa e que ameaçam vir a complicar-se ainda mais.

“Lá estás tu atascado nas patranhas dessa gente!”, atira ela quando dá comigo a ler ou a ouvir as ‘últimas’ do dia.

Tudo isto porque criei o péssimo hábito de não perder os noticiários e debates políticos e económicos dos jornais e da televisão desde que, assustado até ao tutano, me apercebi de que estava a assistir – em crescente desatino – ao desabar estrondoso da sociedade portuguesa sem atinar com o que possa fazer para emendar o meu erro e impedir que isso aconteça. Além disso, figuras nas quais depositei o que me restava de esperança têm vindo a mostrar-me – com crescente veemência – quão fácil é enganar um povo inteiro. Homens na força da vida, bem falantes, persuasivos, transbordantes de argumentação acabaram por me revelar a sua insciência acerca das coisas da vida, do saber que só a vivência nua e crua pode amestrar. Ao correr do tempo têm-me vindo a mostrar uma cada vez mais transparente insensibilidade no tocante a questões relativas à experiência humana e social – valor preponderante para creditar qualquer aspirante a governante de uma nação.

“São ainda muito jovens…” pondera a minha mulher como a desculpá-los das traquinices que cometem.

São jovens, eu sei e até, consta, possuem incontestável valor profissional. Muito recomendáveis, portanto. Desde que não se lhes atribua, evidentemente, o papel de decisores em coisas que manifestamente não entendem, como as singularidades intrínsecas de um povo que, com uma trajectória de cerca de 900 anos, tem evidente dificuldade em estabelecer correlação aceitável com a actualidade arquitectada pelos iluminados que projectam um mundo novo controlado por uma oligarquia marcadamente orientada para o despotismo económico.

Em síntese, a situação de miséria para que os portugueses foram atirados. A crescente incapacidade de resistirem ao pandemónio sócio-económico instalado pelos novos donos do mundo. O desassossego, o medo, a revolta que grassa e se amplia assustadoramente na sociedade portuguesa são realidades que, por estranho que seja, parecem deixar indiferentes os governantes que se voluntariaram para desempenhar o papel de intérpretes desta tragédia. Como se de antemão soubessem que esse é o caminho que convém prosseguir com vista a uma mudança radical do até agora modus vivendi de Portugal.

Certo é que o povo português não pode inocentar-se do desgoverno financeiro que, no plano individual, causou a si próprio. Não haverá desculpas que justifiquem os excessos por si cometidos durante o “carnaval” que se instalou e cresceu no país nas últimas décadas. Contudo, isso não aconteceu por birra ou acaso. Não foi o cidadão comum que, a seu belo prazer, decidiu adoptar um modo de vida a que aspirava, naturalmente, mas ao qual não podia chegar. Outras foram as razões que o levaram aos excessos. O “Compre agora e pague depois”, o “Precisa de dinheiro? Venha buscá-lo! Ficamos à sua espera!” “Aproveite as facilidades que criámos para si!”. “Compre, adquira, leve… a prestações, com facilidades, sem sentir!” E, enquanto essas mensagens troavam nos meios de comunicação, outros preparavam os caminhos da abundância para si próprios. Com os aparentemente inesgotáveis apoios financeiros que só por milagre poderiam ser solvidos os bancos concediam empréstimos a investidores sem currículo e a pedreiros promovidos a construtores que se lançaram na compra de terrenos, começando a edificar casas de “sonho” para todos, alargando assim as periferias das cidades principais até à exaustão. E este louco bem-estar insuflado nas massas sub-repticiamente pelos novos experts das transacções por impulso foi implantando hábitos de consumo que antes não passavam de quimeras nunca satisfeitas num país pobre como Portugal. Entretanto, nesse longo cruzeiro de fantasia, a ousadia de advertências no sentido de alertar para os perigos da insolvência trazida pelas desassisadas facilidades oferecidas tinha uma resposta pronta: “As prestações são a única forma de termos o que precisamos”. Assim foi com as casas, férias, viagens, automóveis, roupas de marca, bugigangas caseiras, os últimos modelos de telemóveis e outros gadgets electrónicos para exibir aos amigos deixando-os de água na boca, enfim… um nunca acabar de coisas para comprar a prestações. E o resultado está à vista…

Posto isto, se para aí estiverem virados talvez seja de bom senso fazerem uma pausa afim de ponderar duas coincidências curiosas entretanto registadas: 1) Se olharmos com alguma atenção para o que se passa na Europa acabarão por constatar que não é só Portugal que sofre a inclemência de medidas de contenção económica e social aparentemente desordenadas. Países, como a Espanha, Grécia, Itália, Irlanda (uns mais do que outros, naturalmente) amargam situações similares embora, de maneira menos aguda, os sinais de desequilíbrio económico, financeiro e social sejam já visíveis noutros que normalmente são tidos como ricos. Daqui, a conclusão de que o mundo vive não um período de crise, mas antes uma metamorfose que objectiva o aprofundamento do fosso já visível entre os ricos e os pobres. Nunca como hoje a criação de uma nova ordem mundial foi tão evidente. Prova disso, asseguram os estudiosos empenhados em acompanhar esse movimento de transmutação (por cá inventou-se a REFUNDAÇÃO), é o cenário que vem tomando forma desde o surgimento da “crise” que abala o mundo, com destaque assinalável na Europa. 2) Todas as medidas de “recuperação”(!) económica-financeira decididas pelos governantes dos países em crise para – segundo afirmam – os tirar da fossa em que estão atolados têm mostrado um sinal comum que é significativo: essas acções, forma geral, apontam para um objectivo insofismável: contribuem para o aumento incessante da pobreza ao mesmo tempo que procuram favorecer a ampliação da riqueza das classes mais abastadas. Em Portugal, exemplo disso é o episódio da TSU (Taxa Social Única) que vai ficar para a história como exemplo do que pode ajudar a dar cabo do que resta de dignidade dum povo em profunda aflição económica e financeira. Ao contrário do mítico Robin Wood que roubava aos ricos para dar aos pobres, os indizíveis senhores que nos governam presentearam-nos com um plano brilhante que consistia na sábia aritmética de tirar aos pobres para dar aos ricos. Assim, às claras, sem receio das ilações (e reacções) que esta acção inqualificável não deixaria de provocar numa nação marcada pela penúria crescente. O resultado desta tentativa de inverter a lógica elementar acabou por mostrar que a arrogância tem limites quando a recusa de colaborar em tamanho insulto foi claramente repudiada por alguns dos que seriam seus directos beneficiários.

Pois é… a minha mulher não pára de me seringar, mas que acham? Eu decidi e está decidido! Enquanto em Portugal a liberdade de opinião e de expressão não voltarem a ser proibidas eu uso e usarei o direito de dizer que o rei vai nu. Depois…bem, depois logo se verá.

E fico-me por aqui. As notícias das oito vão começar…  

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